09 novembro 2025

À volta da meia noite, de Bertrand Tavernier (1986)

À volta da meia noite - Bertrand Tavernier. C/ Dexter Gordon, François Cluzet, Herbie Hancock. 2H13M. 1986


Fim dos anos 50. Dale Turner (Dexter Gordon), um músico americano de jazz, talentoso saxofonista, negro, segue o caminho de muitos colegas seus no pós-guerra. Foge à pressão social e política na América. Na verdade, foge do racismo. Muda-se para Paris, onde consegue (sobre)viver tocando em "caveaux" e clubes de jazz. Alcoolizado ("please, one more verre de vin rouge"), pedrado, vai espalhando o seu talento pela noite fora, à deriva, sem eira nem beira.

Francis (François Cluzet) aparece do vazio da noite escura. Jovem francês, designer gráfico, autor de cartazes de filmes, completamente apaixonado pela música e o som incantatório de Turner, mas com problemas de dinheiro, ouve o seu astro da rua em frente ao "caveau" "Blue Note" (o mesmo nome do célebre clube de Nova York, que ainda existe), o som a sair pelas janelas. À chuva. A pura militância. Após um primeiro encontro, na rua, a aproximação transforma-se gradualmente em amizade.

A adoração torna-se proteção. Também à custa da sua filha, adolescente, um bocado abandonada. O jovem, procura ajudar o músico a controlar os excessos alcoólicos (e outros), trata dele como se fora o seu pai.

A proteção que o jovem francês proporciona ao músico, o universo familiar com que o envolve, ajuda-o gradualmente a controlar os excessos.

A passagem do tempo faz os seus milagres. Recuperado e reequilibrado, Dale Turner regressa às origens. Nova York, onde deixou uma filha, e onde sonha retomar a carreira, reencontrar os seus parceiros músicos no universo frenético da noite, nas jam sessions dos clubes mais emblemáticos - "Village Vanguard", "Birdland", "Blue Note" e outros mais. Do sonho ao pesadelo, um percurso curto. O jovem francês regressa a Paris, mas Dale já não. Elipse. Provavelmente o apelo das drogas e do álcool foi mais forte. Passado pouco tempo Francis recebe um telegrama de Nova York. Dale tinha falecido. Cansado da vida. Fim do ciclo.

Já desde a I Guerra Mundial que o jazz tinha ganho alguma expressão na Europa, particularmente Paris. Com o fim da II Guerra Mundial, muitos músicos, que tinham chegado incorporados no exército americano, acabaram por ficar pela Europa.

Nos anos 50 muitos dos músicos que já tinham uma história nos EUA, acabaram por vir e fixar-se no velho continente. Auto expatriados. Aqui tinham liberdade, a indiferença à cor da pele (a larga maioria era negra), o respeito e admiração dos fãs. Grandes músicos como Dexter Gordon (sim, o nosso "herói", viveu na Europa 15 anos, entre Paris e Copenhaga), Thad Jones, Kenny Drew, Ben Webster e Stuff Smith fixaram-se na Escandinávia, Stan Getz e Don Byas, em Espanha, Bill Coleman, Bud Powell, Kenny Clarke, Sidney Bechet, Steve Lacy, Johnny Griffin, Archie Shepp, em França, Art Farmer, na Áustria.

"Round Midnight" é o título original do filme. E é, também, uma das músicas mais conhecidas e tocadas da história do jazz. É um standard com milhentas interpretações, reinterpretações, reformulações e variações. Saiu da imaginação do Theolonius Monk, em 1943, um pianista genial com um som próprio, sua imagem de marca, como se a música soasse desafinada, dissonante, com falta de técnica. Pura ilusão.

No filme, "Round Midnight" é, juntamente com toda a outra música (e é muita), arranjada e produzida por Herbie Hancock, grande pianista do quinteto de Miles Davis nos anos 60. Hancock também faz uma perninha como actor (Eddie) aliás como outros músicos de topo (John McLaughlin - guitarra, Wayne Shorter - saxofones, Ron Carter - contrabaixo, Tony Williams - bateria) e muitos mais.

E, para nossa surpresa, temos o Martin Scorsese (para mim, juntamente com o Francis Ford Coppola, o maior realizador nosso contemporâneo) a fazer uma perninha como ator - o manager de Dale na América, que o vai buscar ao aeroporto e trata de tudo para ele voltar a tocar em Nova York.

Sendo uma ficção, o filme foi feito a partir das memórias de um outro personagem francês (Francis Paudras), da sua relação com outro grande músico da história do jazz, o pianista Bud Powell, um virtuoso, com mais uns episódios da vida do Lester Young, outro saxofonista seminal, que fez as gravações de referência com a enorme Billie Holliday.

Bud Powell foi, com Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Theolonius Monk e alguns outros, um dos que fez a revolução sonora no jazz dos anos 50, a que se convencionou chamar Bebop.

Este revolucionário pianista era algo instável, sofria de problemas mentais (foi sujeito a internamentos hospitalares e à terapia dos eletrochoques) e era "agarrado" à heroína, quadro pesado de vida, com comportamentos erráticos.

Pois nos anos 50, também ele se mudou para Paris e foi aí que se tornou amigo de Francis Paudras, um amante de jazz que o ajudou na sua reabilitação. Este fã francês escreveu um livro "La danse des Infidèles", onde registou a história que constituiu a matriz base para a ficção de Bertrand Tavernier.

Bertrand Tavernier (1941-2021), um bom cineasta francês, acertou na mouche com o filme. Mais do que tudo, um gesto de amor pelo jazz e certamente de recuperação de memórias da sua juventude em Paris. As cores pesadas, saturadas muitas vezes cinzentas ou negras, são o enquadramento adequado da atmosfera onde circulam os seus personagens , um certo mal-estar com a vida, uma fuga para a frente, uma tragédia previsível. Mas uma grande obra de cinema.

05 novembro 2025

Dia Mundial do Cinema

No dia 5 de Novembro celebra-se o Dia Mundial do Cinema.

Pretexto para partilhar convosco a minha visão sobre esta fabulosa máquina de sonhos que nos fascina como nenhuma outra.

Já atravessou três séculos. Foi há muitos anos, mas não tantos assim, em termos civilizacionais, esclareça-se. O registo histórico é preciso. O ponto zero está identificado. Paris foi o centro.

28 de Dezembro de 1895. No Grand Café, os inventores, irmãos Auguste e Louis Lumière vão apresentar o primeiro espetáculo cinematográfico. Pequenos filmes registando fait divers da grande cidade. A curiosidade é enorme. O comboio que se aproxima da estação, a saída de operários da fábrica, um cão que salta. Sucesso, efeitos de ilusão que perturbam os espectadores. Pânico. Abriu-se  para a humanidade uma enorme  porta de sonhos, o imaginário à solta. A lanterna mágica dos tempos modernos. Atracção universal. O cinema como registo do real, jornal de atualidades, documentário da sociedade, dos reis e presidentes, dos acontecimentos sociais, dos fait divers, dos grandes acidentes, de histórias pessoais. 

Depois foi a via mágica, a féerie fantástica. Georges Méliès, um ilusionista de profissão, foi o "inventor" do cinema como ficção. "Voyage dans la lune" um delírio visual, a imaginação à solta. 
Os franceses orgulham-se de serem os criadores do cinema, mas foi na América que as coisas aconteceram a valer. 

No fluxo migratório da Europa para os EUA, intenso no fim do século XIX, o cinema foi na bagagem (provavelmente no fundo imundo dos porões dos navios). Os nickelodeons (primitivas e pequenas salas de cinema do início do século XX) espalharam-se aos milhares pelo vasto e quase virgem território americano. Nova York era o centro da produção até que foi "descoberta" a Califórnia - sol, luz, clima amigo. A futura Hollywood instala-se gradualmente onde eram campos de pêssegos e maçãs. A história passa a ser outra. 

Nos primeiros vinte e tal anos do Século XX tudo acontece, ainda que no silêncio. As tecnologias só chegariam à voz no declinar da segunda década. Mas foi um tempo maravilhoso. Tudo era possível para saciar a fome de imagens animadas, de ficções, de que as pessoas cada vez se alimentavam mais. Era barato, ajudava a sonhar. Cada filme era uma conquista. David Wark Griffith foi a grande referência desses tempos. Os seus melodramas faziam chorar as pedras da calçada. Com ele, a linguagem, a gramática e os códigos do cinema ficaram definidas para sempre. Com ele também ficou claro como o cinema pode ter um sentido perverso. "O nascimento de uma nação", de 1915, é uma saga sobre a guerra civil americana (mais de três horas), com uma visão racista e segregacionista, que exalta o Ku Klux Klan. Griffith não se safou da revolução sonora. Ficou pelo caminho, mas tem um lugar incontestável na história do cinema.

Felizmente que outras coisas boas aconteciam. Charlie Chaplin (mantém-se ainda no centro do nosso imaginário), Buster Keaton e mais uma meia dúzia de cómicos, com as suas tropelias, as suas máscaras, as perseguições desenfreadas, faziam rir milhões de pessoas por todo o lado. No início do sonoro apareceriam os irmãos Marx. Humor radical. A destruição do sentido da palavra, o absurdo verbal, a desconstrução dos sentidos, o nonsense. O puro prazer.

Mas Hollywood ainda não era o centro do mundo cinematográfico. Na Alemanha pré-nazi apareceu o cinema expressionista, com uma perspectiva sombria sobre o homem, quase anunciadora do que estava para vir, com muita gente que uns anos depois fugia à besta totalitária e foi reforçar o poder criativo de Hollywood. 

Os países nórdicos (Suécia e Dinamarca) criaram um cinema de grande força visual, com a natureza a assumir um lugar importante, muitas vezes a partir das sagas épicas do imaginário nacional. 

E os franceses, sempre mais intelectualizados, desenvolviam filmes avant-garde, surrealismo, subjetividade, maneirismos, esteticismo (o jovem Buñuel mais o jovem Dali fizeram "Un chien andalou" e "L'age d'or" que são referências perduráveis).

Os russos. Após 1917, com Lenine a dar força política ("De todas as artes, o cinema é para nós a mais importante"), o cinema assumiu um papel estrutural na consolidação da revolução, com objetivos de pedagogia e formação das massas. O cinema revolucionário produziu alguns nomes incontornáveis.
Dziga Vertov  e o cinema-olho (o cinema documental e a arte da montagem). Eisenstein, do mudo ao sonoro fez "O Couraçado Potemkin", "Alexander Nevski" e "Ivan, o Terrível".

1927. Ponto fronteira. O primeiro filme sonoro (na verdade só muito parcialmente). "O cantor de jazz". Como se fosse um selo identificativo da essência do cinema, o preto cantor de jazz era um branco, o ator Al Jolson. Fake. Falso. A fingir. O cinema é a arte do fake. Cada vez mais. Mas neste caso um falso intrinsecamente incrustado na essência do cidadão americano-tipo - o racismo.

Muitas vedetas não resistiram ao sonoro. Greta Garbo, apesar de sueca, passou, e Marlene Dietrich, importada da Alemanha, também, mas John Gilbert, vedeta masculina suprema do mudo, afundou-se. Rudolph Valentino, o símbolo sexual, o amante latino, foi apanhado na curva da vida e morreu cedo. O seu funeral foi grandioso, provocando histeria em massa. Idolatria. O cinema maior que a vida.

Anos 30, 40 e 50. As três décadas de ouro de Hollywood. Os estúdios (Paramount, Universal, Fox, MGM, Columbia, Warner...), os produtores mogul, emigrantes quase todos do centro europeu, (Zukor, Fox, Cohn, Mayer, Zanuck, Goldwyin, Warner...). Os escritores. Os realizadores. Os atores. E as estrelas. O star-system. Hollywood como um sistema fabril, com um ritmo de produção febril. Talento a rodos.  Muita gente subutilizada. O sucesso dava para pagar bem a todos. Com especializações. Muitos conseguiam fugir à banalização, outros conseguiram construir obras-primas, assim quase às escondidas.
Dentro das regras, mas muitas vezes forçando-as, realizadores que ficaram na história. Só alguns casos: John Ford, Howard Hawks, King Vidor, Billy Wilder, Nicholas Ray, George Cukor, Fritz Lang, Frank Capra, Orson Welles, Douglas Sirk.

E os atores?

Clark Gable, Cary Grant, Gary Cooper, Humphrey Bogart, Henry Fonda, James Stewart, John Wayne, Kirk Douglas, Charlton Heston, Burt Lancaster. Juntem à lista mais uns da vossa preferência.

E as atrizes?

Marlene Dietrich, Katherine Hepburn, Greta Garbo (abandonou cedo as lides), Betty Davis, Vivien Leigh, Ava Gardner, Ingrid Bergman, Lauren Bacall, Rita Hayworth e poderíamos continuar por aí fora.

Mas o cinema nunca funcionou contra o real.

Na Europa, com a ascensão dos fascismos, foi transformado num veículo privilegiado de "educação" do povo. Mussolini e os épicos sobre o império romano e umas histórias melosas para entreter as massas e alimentar as utopias fascistas. 

E Hitler e Goebbels. O cinema como manipulação, propaganda e ideologia. Os nazis tornaram-no um poderoso meio de mobilização política. A estética nazi. Leni Riefenstahl, uma mulher, foi a talentosa mestra de cerimónias com dois filmes de propaganda sobre a superioridade alemã, tão brilhantes 
(ainda hoje) como horripilantes. O fascínio do mal.

Nos anos 50, após a dureza da guerra, o sonho foi-se desfazendo, Hollywood foi-se banalizando e a televisão foi conquistando espaço visual. O cinema sofreu e bem. Muito menos filmes, as vedetas foram envelhecendo e outras desaparecendo dramaticamente (Marilyn Monroe). Outros atores ganharam lugar. Marlon Brando e James  Dean. Elizabeth Taylor, Paul Newman, Dustin Hoffman,  Robert Redford, só para citar alguns. Outros grandes filmes vieram para nosso contentamento, das fontes normais, particularmente dos EUA. 

Nesses tempos o mundo cinéfilo ocidental "descobria" o cinema japonês. Mas só depois da derrota da guerra e da ocupação americana. Akira Kurosawa, Mizoguchi, Ozu.  Mas, qual prenda escondida, o cinema japonês já tinha uma história de quantidade, qualidade e muitos realizadores de topo. Só que não chegavam ao Ocidente. E, na verdade, continua a ser assim, nós só vamos conhecendo pontualmente as produções japonesas. Às vezes quase por acidente. Aqui há uns anos houve o fenómeno Nagisa Oshima, com o sucesso de "O império dos sentidos". Depois ainda vimos dele o magnífico "Feliz Natal, Mr. Lawrence".

Já agora, por associação de ideias sobre o desconhecido, falemos do cinema da Índia. Produz muitas centenas de filmes por ano, alimenta uma máquina produtiva e artística enorme. É  designado Bollyhood concentrado na antiga Bombaim, com as ficções faladas (e cantadas, imagem de marca) na língua hindi. Há outras indústrias regionais especializadas noutras línguas que fazem mais umas centenas. A Índia é um continente com não sei quantas línguas e identidades sociais e culturais. É, em certo sentido, um mistério.

Ainda mais mistério. Na Nigéria, desde os anos 80, fazem-se anualmente muitas centenas de filmes que alimentam o mercado nigeriano e as redondezas africanas, em circuito fechado. Como é possível? Eu não sabia.

Voltemos ao fio condutor. À crise de Hollywood pode associar-se,  por antítese, a Nouvelle Vague francesa. Nos anos 50, uma malta nova educada no fascínio pelo cinema americano (a Cinemateca de Paris como centro de aprendizagem, discussão e ideias), "impôs" nos Cahiers du Cinéma a identidade de autor a cineastas que eram apenas a peça principal da máquina produtiva de Hollywood (John Ford, Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Anthony Mann, Nicholas Ray, Orson Welles). Este pessoal começa a sair da escrita e a entrar na imagem. Começa a fazer filmes fora das regras, baratos, libertos de amarras, com ideias novas. Em poucos anos havia um conjunto de criadores notáveis - Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette, Alain Resnais, Claude Chabrol.

E na outra Europa, aparecia um cinema de resistência no bloco leste. Na Checoslováquia, na Polónia, na Hungria, lutava-se contra a boçalidade ideológica, as amarras do pensamento dos regimes controlados por Moscovo. Alguns filmes conseguiam ser mostrados do lado de cá, mas poucos. Roman Polanski safou-se para ocidente, da Polónia. Milos Forman ("Voando sobre um ninho de cucos") também, da Checoslováquia.

Mas nos EUA, Hollywood não estava adormecida. Apenas a reformular modos de ação. Novas formas de trabalhar, novos meios, novas ideias.

E nos anos 70 aparece uma nova geração de cineastas, com cinefilia no sangue, arejada por ideias europeias (sim, a Nouvelle Vague foi importante) e começa a dar cartas.

Fazem parte da nossa geração.

Acompanhámo-los quando começaram a aparecer, vibrámos com eles, decepcionámo-nos algumas vezes, mas criaram alguns dos mais importantes e referenciais filmes da nossa vida. 

Robert Altman ("MASH", "Nashville"), Hal Ashby ("Ensina-me a viver", "O regresso dos heróis"), Peter Bogdanovich ("A última sessão de cinema", "Daisy Miller"), George Lucas ("American Graffiti", "A guerra das estrelas"), Francis Ford Coppola ("O padrinho", "Apocalypse Now"), Steven Spielberg ("Tubarão", "Encontros imediatos do terceiro grau") e Martin Scorsese ("Taxi Driver", "O touro enraivecido").

Estes são apenas alguns nomes dessa geração notável.

Assim um pouco à parte, temos que meter o Woody Allen. Fora do sistema, com o centro nevrálgico em Nova York, construiu com o ritmo dos ponteiros do relógio, uma ampla e notável obra.

No livro seminal sobre o cinema americano desse tempo, sintomaticamente intitulado "Easy Riders, Raging Bulls", o autor, Peter Biskind, faz uma boa síntese desse universo de criação: "Quando 'Easy Rider', filme de baixo orçamento sobre motards, chocou Hollywood com o seu sucesso em 1969, nasceu uma nova era em Hollywood. Talentosos jovens cineastas como Scorsese, Coppola e Spielberg, mais uma nova geração de atores, incluindo De Niro, Pacino e Nicholson, tornaram-se figuras poderosas que iriam fazer os clássicos modernos como "O Padrinho", "Chinatown", "Taxi Driver" e "O Tubarão". 'Easy Riders, Raging Bulls' aborda o universo vibrante e selvagem que era Hollywood nesses anos - uma celebração ousada, descarada de sexo, drogas e rock 'n' roll (quer no ecrã como fora dele) e um clima em que a inovação e a experimentação reinavam sobre tudo."

E pronto, fico pelos anos 80. Para o ano há mais. Como se fosse um daqueles filmes aos episódios dos anos 20 que alimentavam os sonhos das massas...(to be continued). 

The End.





02 novembro 2025

O Fabuloso Destino de Amélie, de Jean-Pierre Jeunet (2001)


"O Fabuloso Destino de Amélie" - Jean-Pierre Jeunet. C/ Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz, Rufus. 2h02m. 2001

Não é feliz a vida da jovem Amélie (Audrey Tautou). Também não teve uma infância feliz. Cresceu para dentro, isolada no seu mundo. A mãe morreu. O pai sobreviveu à mãe, adorando um mausoléu dedicado à mulher morta. Após deixar a vida de subúrbio, a jovem e inocente Amélie muda-se para Paris, para Montmartre, onde começa a trabalhar num café. 

Os seus olhos inocentes abarcam o mundo. Um dia o encontro acidental de uma caixa na casa de banho da casa onde morava, leva-a a procurar o antigo morador para lha devolver. Sem razão aparente, esse encontro despoleta na jovem uma pequena revolução. Uma nova visão do mundo. Um sentido sustentado para a vida. Uma missão. A dedicação a quem precisa. Personagens mais ou menos bizarras, marginais, anormais. Pequenos gestos, grandes afectos. Uma boa samaritana. Mas, e ela, não terá direito ao amor?

Nos seus encontros afetivos, mais ou menos pungentes, mais ou menos bizarros aproxima-se do misterioso Nino (Mathieu Kassovitz), que coleciona fotografias esquecidas e abandonadas nas cabines automáticas de photomaton. Trabalha em part-time num comboio fantasma e num peep-show. Mais um pobre-diabo a (sobre)viver, mesmo pelas vias mais miseráveis da pornografia. A felicidade é possível. Há que acreditar nela, lutar por ela. Em última instância  acreditar que é possível um mundo melhor. Ela teve sorte, fez a sua sorte 

Comédia romântica, filme singular, delicado. Uma fábula moderna. Um enorme puzzle. Um jogo. Como se fosse uma banda desenhada, a partir de um conto infantil. 

Sendo um filme já do século XXI, é uma pequena homenagem ao cinema francês dos anos 30 e 40, o realismo poético francês. Fusão do realismo com uma atmosfera lírica e fatalista, sombria. Tudo acontecia num universo mais ou menos marginal ou antissocial. A felicidade estava à vista mas sempre adiada. Jean Renoir, Jean Vigo ("L' Atalante"), Marcel Carné  foram cineastas de referência desse cinema. Jean Gabin foi o grande actor.

Jean-Pierre Jeunet, é o realizador e argumentista. O seu universo de referência é o cinema de animação. Também faz publicidade, vídeos musicais (Jean Michael Jarre). As suas temáticas são do universo fantástico com umas incidências surrealistas, por vezes perturbadoras.

O primeiro filme que fez, "Delicatessen" (1991), entra pelo humor negro num quadro arrepiante. Num mundo apocalíptico, a fome tudo determina. Um açougueiro vai matando pessoas para alimentar os seus inquilinos. Argumento bizarro, no mínimo.

O seu sucesso (vários Césares do cinema francês) levou Hollywood a convidá-lo a fazer "Alien - A ressurreição" (1997), a continuação da história espacial perturbadora que tinha sido lançada por Ridley Scott em 1979.

Das pequenas preciosidades que fazem deste filme um pequeno diamante lapidado, há também a música. Banda sonora composta por Yann Tiersen, um compositor de vanguarda , multi-instrumentista. As suas raízes vão até Eric Satie do princípio do século XX, mas a sua identidade é minimalista. Steve Reich, Michael Nyman e Philip Glass são as influências assumidas. Dois anos depois fez também a banda sonora de "Good Bye, Lenine", que já aqui passou.

Passados vinte e tantos anos, é significativo que o filme resistiu ao tempo. Os personagens ganharam mais afectividade aos nossos olhos. A delicadeza deles quase os espatifa, mas o sentido positivo da ficção ajuda-os a ganhar espaço num mundo cada vez mais hostil. Há um fumo de esperança.

25 outubro 2025

Os Incorruptíveis Contra a Droga ("The French Connection"), de William Friedkin (1971)

"Os Incorruptíveis Contra a Droga" ("The French Connection") - William Friedkin. C/Gene Hackman, Roy Scheider, Fernando Rey. 1971. 99 M.


Citação: "Os Incorruptíveis Contra a Droga (The French Connection) é um brilhante policial, no qual Gene Hackman é o infatigável Jimmy 'Popeye' Doyle, polícia que odeia figadalmente os traficantes de droga.

Na noite dos Óscares, este filme tornou-se inesquecível para o próprio Hackman, consagrado como melhor ator, bem como para o próprio realizador William Friedkin, talvez mais célebre por ter feito O Exorcista (The Exorcist, 1973), que também levou para casa o tão apreciado boneco dourado."

Um bilhete de identidade do filme e pano para mangas sobre o realizador.

William Friedkin, um percurso mais ou menos normal nos anos 60 e 70. Do pequeno ecrã para o grande ecrã. Ganhou tarimba durante uns anos numa estação de televisão local da cidade onde nasceu, Chicago. Começou com um filme veículo para o par musical Sonny e Cher, cuja música traz certamente boas memórias para muitos de nós.

Foi fazendo uns filmes pouco notados e em 1971 acerta na mouche. "Os Incorruptíveis Contra a Droga". Cinco Óscares e a consagração. E as coisas continuaram a correr-lhe bem. O filme seguinte foi nem mais nem menos "O Exorcista". Demónio. Possessão. Sobrenatural. Terror. Usando como matriz um caso paranormal avalizado pela igreja católica americana, fez sucesso comercial mundial enorme, um blockbuster, servido por grandes atores - Ellen Burstyn ( no ano a seguir ganhou o Óscar com o filme de Martin Scorsese "Alice já não mora aqui") e Max Von Sydow que fez alguns dos filmes de referência de Ingmar Bergman. De então para cá já houve não sei quantas continuações, remakes, variantes, etc. e tal.

William Friedkin não tem uma obra muito extensa até porque, a partir de uma certa altura, dispersou-se, apostou na encenação de espetáculos operáticos com sucesso. Mas pessoalmente penso que há outros dois filmes dele que merecem a pena.

Em 1977 fez "O comboio do medo", um remake de um dos grandes filmes franceses dos anos 50, "O salário do medo" de Henry-George Clouzot. Uma história brilhante sobre o transporte de uma carga de nitroglicerina por um longo trajeto acidentado, algures na América do Sul. Yves Montand num papel incrível de luta constante contra a morte. Ao mínimo descuido, a catástrofe.

Pois vinte e tal anos depois William Friedkin pegou na mesma ficção (um romance francês do início da década de 50) e fez um filme muito interessante.

O outro filme que aqui destaco é "A Caça" de 1980. Al Pacino faz um dos melhores papéis da sua carreira, na minha opinião, numa matriz policial nos meios homossexuais sado-masoquistas. Um serial killer à solta, um polícia obcecado, gradualmente a afundar-se na confusão de valores, crenças e identidade sexual. Na altura, o filme foi fortemente atacado pelas comunidades gay (ia demasiado ao fundo, abria demasiadas janelas, expunha demais), mas gradualmente tem estado a ser recuperado na memória cinematográfica. Um dia hei-de revê-lo.

Voltemos ao filme e completemos o seu bilhete de identidade.

Nova York. Uma equipa de detectives - Popeye Doyle (Gene Hackman) e Buddy Russo (Roy Scheider) procuram interceptar uma rede de narcotráfico, a designada French Connection, com o centro decisional em Marselha. No perigoso jogo do gato e do rato, pelas avenidas, ruas e becos de Nova York um dos criminosos tenta eliminar Doyle. A partir daí o polícia bom quanto baste mas com princípios e regras um bocado fluídos, à sua maneira, liberta o estado selvagem da sua alma. Entra numa espiral de violência.
Baseado em factos e personagens reais, é um filme másculo, entre o suspense e a ação. Nada impede aquela missão "sagrada" de Doyle. Num dos cartazes de publicidade do filme estava escrito: "Doyle is bad news - but a good cop". À maneira dele, claro. Não há sentidos proibidos. Aquela perseguição automóvel, grande manifesto de exibicionismo cinematográfico, é assim uma espécie de exaltação. Como se fosse um grande chuto. Uma explosão de energia reprimida.

Nova York é o espaço entrópico por excelência. Desordenado, caótico. Os personagens circulam, vigiam-se, reconhecem-se, controlam-se. Cidade suja, desordenada, mas próxima dos personagens, às vezes como um grande quadro expressionista.

Gene Hackman. Toda a energia da ficção nele absorvida. O seu detective Doyle porta consigo a missão do bem, mesmo que por vias tortuosas. Todo ele exposto na essência das suas imperfeições. Óscar para melhor ator. Mais do que merecido para um ator que já começou tarde, estava longe do modelo de galã, mas era fabuloso, mesmo em papéis secundários.

Tinha 95 anos, estava retirado já há uns bons anos, sofria de Alzheimer e fomos surpreendidos pela sua morte algo estranha. Em 26 de Fevereiro ele e a mulher foram encontrados sem vida na casa que partilhavam no Novo México. Terá morrido de insuficiência cardíaca.

E Fernando Rey. A sua personagem é o líder da rede europeia da droga. De Marselha a Nova York, o requinte comportamental, a inteligência prática, o sentido de humor. Desapareceu e nunca foi condenado. Lembre-se que foi um dos atores de referência de Luís Buñuel, com quem fez filmes da nossa memória como "Tristana", "Viridiana", "Este obscuro objeto do desejo" ou "O charme discreto da burguesia".

Com este filme prestemos uma pequena homenagem ao enorme talento de Gene Hackman. Paz à sua alma.

19 outubro 2025

As Vinhas da Ira, de John Ford (1940)


"As Vinhas da Ira" - John Ford. C/ Henry Fonda, Jane Darwell, John Carradine. 1940. 123m

Um livro, um escritor. Um filme, um realizador. John Steinbeck, Prémio Nobel da Literatura (1962). Com este romance (1939) venceu o Pulitzer e ganhou uma enorme visibilidade no panorama social e político da América em crise profunda. John Ford, a essência do cinema em muitas e diversificadas obras-primas, em mais de cinquenta anos de filmes, do mudo ao sonoro. 

Fez parte do pequeno grupo de grandes cineastas que começou no cinema mudo e continuou em registo elevado no cinema sonoro. Deixou para a história para aí uma dúzia de obras imorredouras.

Mais três nomes incontornáveis que fizeram percurso similar com sucesso: Howard Hawks, Raoul Walsh (tal como Ford, zarolho, como Fritz Lang, fugido aos nazis e, já agora, como Nicholas Ray, mais para a frente) e Cecil B. De Mille. Não houve muitos mais.

"As Vinhas da Ira" é uma dessas obras, que ainda agora nos dá o prazer do grande cinema.

Anos 30. Após ter estado preso por homicídio involuntário, Tom Joad (Henry Fonda) regressa a casa no estado de Oklahoma na altura da grande crise climática que durante anos afectou uma parte importante do interior da América. A grande depressão. A ganância dos bancos, associada aos interesses de grandes grupos agrícolas, contribuiu para o resto. Sem possibilidade de sobrevivência, milhares e milhares de famílias abandonam aqueles lugares onde viviam há gerações e vão à procura da terra prometida (a conotação bíblica atravessa toda a ficção). Califórnia é o destino. De lá chegavam aos "nickelodeons" e aos ecrãs espalhados pela América, os sonhos, os desejos e as fantasias inimagináveis com o Rodolpho Valentino ou a Mary Pickford, o Douglas Fairbanks ou a Gloria Swanson, fabricados por Hollywood.

Mas, como sempre, a realidade é mais dura que a imaginação. A viagem é difícil, os incidentes são múltiplos, morrem pessoas. A família Joad luta unida, em torno de Ma Joad (Jane Darwell, extraordinária personagem, agregadora da família), alimenta a esperança de dias melhores, mas… como é óbvio, não há terra prometida.

John Steinbeck criou com este livro um dos retratos mais espantosos e dramáticos da luta do homem contra os obstáculos, naturais e sociais, da sua resistência e do seu orgulho. Toda a sua obra, com um discurso linear e objetivo continua a ser importante. Felizmente tem sido reeditada pelos "Livros do Brasil".

Steinbeck teve sorte com Hollywood.  John Ford nessa altura já possuía um currículo cheio de coisas boas. Tinha começado lá no fundo, pau para toda a obra, apoiando um irmão mais velho que era realizador, nos tempos de afirmação e consolidação dos estúdios e em que o cinema procurava identidade artística, e em 1917 começou ele a fazer filmes.

Fez muitas coboiadas (já velhote identificava-se assim: "I am John Ford, I make westerns"), muitos outros géneros (o habitual, histórias para entreter o povinho, dramas, comédias, polícias e ladrões) e foi criando gradualmente uma imagem de grande competência e eficácia. Já com o sonoro bem estabelecido, em 1935, ganha Óscares com um filme sobre a Irlanda, país que será uma referência para ele até ao fim da vida. Era filho de irlandeses e disso se orgulhava. Fez alguns filmes na Irlanda, nomeadamente o que lhe deu os últimos Óscares - "O homem tranquilo".

John Ford foi criando a sua própria lenda no star system de Hollywood. Era um personagem bizarro, controverso, sádico, com fúrias lendárias. Tinha o seu grupo privilegiado de atores e colaboradores sem fazer distinções entre as estrelas Henry Fonda,  James Stewart ou John Wayne e outros pequenos atores, amigos, que o acompanharam décadas entre simples figurações e umas linhas de diálogo. Tinha as suas próprias regras do jogo e poder no sistema para as impor. Era uma mistura estranha de conservador e democrata. Queixava-se dos excessos de Hollywood, demasiado sexo e violência. Na essência era um individualista empedernido, que dizia: "A verdade da minha vida é cá comigo e não se metam nisso."

Antes de fazer "As Vinhas da Ira", fez "Cavalgada Heroica" (1939), um clássico inquestionável que pôs no imaginário do espectador de cinema o John Wayne, em certo sentido uma "criação" do John Ford que, ao longo do tempo, o iria utilizar em múltiplas obras-primas. Lembremos algumas: "Homens para Queimar" (1945), "Forte Apache" (1948), "Os dominadores" (1949), "Rio Grande" (1950), "O homem tranquilo" (1952), "A Desaparecida" (1956), "O homem que matou Liberty Valance" (1962), "A taberna do irlandês" (1963). 

Fiquemos por aqui e voltemos a "As Vinhas da Ira". Darryl Zanuck, o histórico produtor de Hollywood, comprou os direitos de autor do livro e pôs a máquina do estúdio a funcionar. Aparentemente o filme não era para ser feito por Ford, mas acabou por lhe ir parar às mãos. "Tudo aquilo me agradou - ser sobre pessoas simples - e a história era similar à fome na Irlanda, quando tiraram as terras às pessoas e as deixaram a vaguear nas ruas e a morrer à fome", disse ele mais tarde.

Daqui resultou um dos vértices da filmografia de Ford, mas há tantos. Claramente um Ford engagé, socialmente comprometido, como logo a seguir com "A estrada do Tabaco", a partir de Erskine Caldwell. Nesses anos teve Óscares com "As Vinhas da Ira" e "O Vale era Verde".

Andrew Sarris, um crítico e analista privilegiado do cinema americano, (cúmplice militante dos Cahiers du Cinéma franceses, nos anos 60, na defesa da teoria do autor - atribuir ao realizador a essência do filme) sintetizou bem John Ford: "Nenhum outro cineasta americano tem uma visão tão vasta da paisagem do passado da América, dos mundos de Lincoln, Lee, Twain e O'Neil, das três grandes guerras, do westerns e das migrações transatlânticas, dos índios sem cavalos do vale de Mohawk e das cavalgadas dos Sioux e dos Comanches do Oeste, das incursões irlandesas e espanholas e da política em equilíbrio instável das cidades poliglotas e dos estados fronteiriços."

Se Andrew Sarris foi tão eloquente na definição do universo fordiano, que dizer do enorme Orson Welles que, quando lhe perguntaram quais os cineastas americanos que mais o atraíram e influenciaram, a sua resposta (uma boutade, certamente enunciada com a voz profunda e colocada como se fosse uma tirada shakespeariana) teve o sentido redundante do absoluto: "Os velhos mestres. Isto é: John Ford, John Ford e John Ford."

Faz parte dos livros que quando o jovem Orson Welles (vindo do teatro e da rádio) estava a preparar o "O Mundo a Seus Pés", viu vezes sem conta a "Cavalgada Heroica", onde disse tudo ter aprendido sobre cinema. Aprendeu magnificamente.

Este filme de John Ford, apesar das décadas de idade, ainda tem o condão de nos posicionar no lado certo dos valores do homem. Aquele desabafo final do personagem do Henry Fonda (antes de fugir) para a mãe é forte.

Mas não nos iludamos. Os netos daqueles personagens que ficaram no Oklahoma e nos outros estados vizinhos foram os que puseram  Trump no poder e são atualmente os seus grandes sustentáculos. 

12 outubro 2025

Roma Cidade Aberta, de Roberto Rossellini (1945)


"Roma Cidade Aberta" - Roberto Rossellini. C/ Anna Magnani, Aldo Fabrizi, Marcello Pagliero. 98 M. 1945.

1944. Roma ainda está ocupada pelos nazis. A resistência luta de todas as formas e feitios. Diferentes ideias políticas, posições ideológicas contraditórias (católicos versus comunistas), mas união contra o inimigo/ocupante comum a abater. O padre Pietro (Aldo Fabrizi) é um colaborador activo da resistência, portador de mensagens e de apoio financeiro. A Gestapo captura-o e tenta forçá-lo a trair. Resistiu heroicamente. Acabará fuzilado.

História de um militante comunista, membro da resistência, procurado pela Gestapo (Marcello Pagliero) que, acossado pelos alemães, foge de casa em Roma e procura um esconderijo nos arredores da capital. Traído pela namorada, é alvo de uma tentativa de salvação por parte de Pina (Anna Magnani), noiva do seu melhor amigo, Francesco, e pelo padre Pellegrini (Aldo Fabrizi), mas morre torturado pelos alemães.
História de resistência, em certo sentido antecipando o próximo futuro político de Itália - um padre e um comunista aliados numa causa comum.
Anna Magnani, vinda do music-hall, a revelar-se uma actriz de uma densidade dramática arrebatadora - a sequência da sua morte às mãos dos nazis é das mais prodigiosas na obra de Rossellini. Ganhou o passaporte para Hollywood. Onde fez coisas importantes.

"Roma Cidade Aberta" é considerado um dos marcos inquestionáveis da história do cinema formando, juntamente com "Paisà - Libertação" e "Alemanha, Ano Zero", a chamada Trilogia da Guerra de Rossellini. Os manuais e as revistas de cinema dos anos 50 estão cheios de artigos e discussões mais ou menos académicas sobre o filme e o chamado neorealismo. Muitos atribuem a "Roma Cidade Aberta" o início daquele movimento estético, artístico e cinematográfico. Na verdade, dois anos antes, Visconti tinha feito o seu primeiro filme, "Obsessão", a partir do livro policial americano "O Carteiro toca sempre duas vezes" e é mais ou menos consensual que foi o primeiro filme neorealista. Mas é um facto que o filme de Rossellini constituiu uma espécie de separação entre um antes (o cinema fascista de Mussolini, escapista e propagandístico) e um depois (a dessacralização do cinema, uma forte influência documental, secura narrativa, a representação crua e realista das dificuldades económicas e sociais da época, com sets de filmagem reais, muitos actores não profissionais e temas duros, reflectindo as dificuldades das pessoas no caos de destruição da guerra - pobreza, desemprego, miséria...).

Depois de acontecimentos mais ou menos bizarros, o filme foi totalmente ignorado aquando da estreia, depois começou a captar alguma curiosidade intelectual e, quase por um passe de mágica, estreou nos EUA (o primeiro filme italiano após a guerra no mercado americano). Espantosamente foi um sucesso. A partir daí é outra história.

Mas Rossellini tem como cineasta uma história um pouco nebulosa. Em jovem tinha feito umas curtas metragens e  três filmes de guerra para o poder fascista que, independentemente, de argumentos mais ou menos elegantes mais ou menos forçados, foram instrumentos ideológicos do poder fascista. 

Depois de "Roma Cidade Aberta" a sua carreira esteve longe de ser linear. Mantendo sempre uma linha estética de cinema pobre, apostando na autenticidade, acabou, por opção pessoal a fazer filmes para a televisão com uma forte incidência em temas e personagens cristãos. Pelo meio - durante sete anos - houve a história amorosa e cinematográfica (escandalosa) com a Ingrid Bergman. Quando ela regressou ao star system glamouroso de Hollywood, com cinco filmes de Rossellini no currículo ("Stromboli", "Viagem a Itália" e "Europa 51"...), um divórcio e três filhos para sustentar, Rossellini continuou na Europa fazendo cinema pobre, simples e cristão. A televisão foi o seu meio privilegiado.

Jean-Luc Godard, na sua juventude de crítico de cinema, escreveu "Todos os caminhos levam a 'Roma Cidade Aberta". Já passaram umas boas dezenas de anos e só podemos concordar e, mais uma vez,  deixarmo-nos enredar pelas suas personagens, lugares e situações. O padre Pietro é para mim um exemplo notável de crente nos homens, apesar de todos os pecados.
O Papa Francisco considerava este filme um dos seus favoritos. A propósito, será que a Igreja tem papa depois da sua morte? Não se dá por ele.

05 outubro 2025

O Leopardo, de Luchino Visconti (1963)


"O Leopardo" - Luchino Visconti. C/Burt Lancaster, Alain Delon, Claudia Cardinale. 178 M. 1963.

Tudo acontece na Sicília. Tudo se passa entre dois momentos.
Começo. Genérico. Plano fixo sobre um portão que separa um palácio da sua envolvente. A linha de separação define aquele mundo. Para dentro o fausto, o requinte, o bom gosto, a luxúria dos poderosos aristocratas. Para fora, a miséria, a fome, a subserviência do povo embrutecido há muitos séculos. 
Fim. Sequência. Um homem alquebrado, doente, vazio, arrasta-se, de madrugada por ruas degradadas, escuras e perde-se no fim da noite. Vem de uma grandiosa festa aristocrática, vai para a morte, anunciada (figurativamente). É o príncipe de Salina.

1860, grande agitação política e militar um pouco por toda a Europa (por cá também). Garibaldi inicia o movimento de unificação de Itália. Meio militar, meio guerrilha, muito entusiasmo e enorme desorganização. Anarquistas, carbonários, maçons, mercenários, tudo cabia lá. Muitos mortos, muitos assassínios. Muitas injustiças. Mesmo assim, imparável. O processo de unificação de uma multitude de Estados autónomos durou dez anos, com a igreja (os Estados eclesiásticos) pelo meio a ter um papel pouco digno.

É neste contexto de guerra civil, caldeirão efervescente, da chegada de Garibaldi à Sicília que tudo aconteceu. Em cerca de um mês, os "1000 de Garibaldi", camisas vermelhas no corpo, esfarrapados, muito entusiasmo e coragem, grande indisciplina e irresponsabilidade, tomaram o poder na ilha aos Bourbon. Aquela campanha ficou conhecida como a grande insurreição do sul. O romantismo associado era tão grande que até o grande Alexandre Dumas, escritor imaculado, se uniu aos libertadores com um navio, dinheiro e armas. Pequenas mitologias que ficaram para a história.

Fujamos à confusão exterior, aos estilhaços das bombas, e entremos no palácio. Uma família participa da missa privada. É o príncipe de Salina (Burt Lancaster), mais a mulher, os filhos e outras adjacências familiares. É assim como é há centenas de anos. A continuidade, os rituais. A norma dos comportamentos cimentados por gerações. Superfície visível. Mais abaixo é que as coisas são mais complexas. O príncipe tem lá fora a sua amante, a sua sexualidade. Nenhum dos filhos dele lhe merece grandes expectativas no futuro, pelo que transfere para o seu sobrinho Tancredi (Alain Delon) o seu empenho. O príncipe percebe que a sociedade está a mudar e mostra resistência, mas compreensão. Ajusta-se. Nas conversas de caça ele expõe com clareza o que pensa da Sicília, do poder e, em última instância, do homem. "Para que as coisas permaneçam iguais é preciso que tudo mude".

Por uma questão de segurança da família, mudam-se todos da capital - Palermo - para uma outra propriedade majestosa da família, Donafugata. Passam pelos bloqueios das tropas garibaldinas porque têm poder e influência para isso. Os coitados do
Zé povinho - para quem estava a ser feita a revolução - são impedidos, claro. 
As relações entre as pessoas aí são quase medievais. O povo acolhe a família como se fosse de outro mundo. Senhores e escravos. Nesse contexto, seguros da instabilidade militar, repetem-se os rituais de poder, reproduzem-se os dogmas. Com fausto e presunção.

O sobrinho querido (Tancredi) - que, há umas semanas era ardoroso revolucionário e agora estava perfeitamente enquadrado no novo establishment político - encontra a mulher para o seu futuro, Angelica (Claudia Cardinale), filha do senhor lá do sítio, um arrivista, chico esperto, burgesso quanto baste, que gradualmente vai comprando as propriedades aos grandes senhores do passado, D.Calogero (Paolo Stopa). O príncipe tem que pactuar e encaixar (a sua inteligência política era enorme) porque aquele representa o futuro, nomeadamente para a sua família.

Tudo termina - o filme e, figurativamente, aquela época naquele lugar - com um grande e espaventoso baile onde, em pequenos pormenores, se vislumbram os artifícios, os ridículos, as idiossincrasias e as hipocrisias da aristocracia. Um tour de force deslumbrante, redundante, barroco, como se fosse a última manifestação de vida daquele mundo indolente, em declínio. O príncipe aguentou, mas em dor e melancolia. Ele sabe que aquilo não tem futuro.

Filme esplendoroso do Luchino Visconti, retratando um mundo que era também o seu e da sua família há centenas de anos. Uma câmara muitas vezes móvel, elegante, com a leveza das valsas do baile final. Sequências notáveis do ponto de vista da linguagem cinematográfica (o aparecimento de Angélica pela primeira vez no salão de festas da família do príncipe; dinâmica dos planos, o jogo das imagens determina o natural e previsível desenrolar da ficção).
O filme foi feito a partir do livro homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, saído uns anos antes (1958), uma espécie de memorial sobre Dom Fabrizio Salina (Príncipe de Lampedusa), avô do escritor.

E os actores, meu Deus. Burt Lancaster, a fazer um príncipe notável, com o olhar autoritário, a pose segura e o rigor da ancestralidade europeia, ele que vinha lá de Hollywood, onde a seguir a um policial vinha uma coboiada e logo depois uma comédia de costumes.
Alain Delon, jovem querubim do cinema francês, com um dos muitos bons papéis que fez no cinema europeu (já tinha feito com o Visconti "Rocco e seus irmãos", também com a Cardinale), a par de muitas e diversificadas porcarias, mais ou menos indigestas. Lamentavelmente abandonou-nos no início deste último Agosto.
Claudia Cardinale. Esta foi embora há duas semanas. Juntamente com Anna Magnani, Sofia Loren e Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale fez parte das grandes estrelas do cinema italiano que alimentaram o imaginário da nossa juventude. Teve uma carreira polvilhada de grandes filmes, trabalhou com alguns dos melhores realizadores e teve uma longa vida. Que descanse em paz.

Dediquemos respeitosamente esta sessão ao Alain Delon e à Claudia Cardinale.
Tenhamos o prazer de os acompanhar por quase três horas de grande cinema

À volta da meia noite, de Bertrand Tavernier (1986)

À volta da meia noite - Bertrand Tavernier. C/ Dexter Gordon, François Cluzet, Herbie Hancock. 2H13M. 1986 Fim dos anos 50. Dale Turner (Dex...