11 junho 2025

As Neves de Kilimanjaro, de Henry King (1952)

As Neves de Kilimanjaro, de Henry King. Com Gregory Peck, Ava Gardner, Susan Hayward. 1952. 117m

Ernest Hemingway. É sempre um prazer renovado reencontrarmo-nos com a sua ficção, mesmo que por via indireta, intermediada pelo cinema.

A sua vida, relativamente curta (morreu aos 61 anos por iniciativa própria - um tiro na cabeça) foi cheia de vivências extremas, exóticas e aventureiras; era emocionalmente instável e sujeito a estados de depressão. Americano do centro do continente, Illinois, foi um cidadão do mundo, privilegiado, amante dos prazeres da vida, talentoso, viajante, defensor da liberdade.

A sua obra é, em certo sentido, um espelho da sua vida. A I Guerra Mundial, a Guerra Civil de Espanha, a II Guerra Mundial. Jornalista, correspondente de guerra, escritor. Paris é uma referência da sua vida e Espanha a paixão. África foi um espaço de fascínio. Andou por lá em caçadas ("As verdes colinas de África", de 1935, é uma não-ficção a partir de um safari que ele fez na Tanzânia, acompanhado pela segunda mulher, Pauline Pfeiffer). Cuba (Finca Vigia) foi a sua terra adoptiva nos últimos vinte e três anos de vida. Lá viveu e se esgotou. Criou e alimentou as suas mitologias domésticas nos bares de Havana, embebedando-se com mojitos e, no mar ao largo, em aventuras piscatórias que foram a matriz para a sua obra-prima "O Velho e o Mar".

"As Neves de Kilimanjaro" é uma short story escrita em 1936. Já tinha publicado "O sol também se levanta/Siesta" (1926) e "Adeus às armas" (1929). O seu nome já contava, já era uma referência da ficção escrita americana. Obviamente muito do que ele passou para o texto é da sua experiência, das suas aventuras, dos seus amores, das suas fixações (caçadas e touradas), do seu sentido lúdico, da sua postura no mundo. Na verdade, o escritor Harry Street da história deste filme é o escritor Ernest Hemingway da História.

África. Nos anos trinta do século passado tinha uma outra configuração e identidade. As colónias portuguesas, inglesas, francesas, belgas e alemãs preenchiam o mapa do grande continente. Era a herança, em certo sentido, do Mapa Cor de Rosa, essa imposição dos "amigos" ingleses aos portugueses, da ligação entre Angola e Moçambique, lá nos idos anos noventa do século XIX. Passados mais de cem anos, África já não é aquela África mas, infelizmente, uma África muito pior. Formalmente a colonização acabou, na realidade a miséria é generalizada e a exploração das populações pelas elites locais é escandalosa.

"As Neves de Kilimanjaro" é a Tanzânia dos animais selvagens em liberdade, dos cheiros quentes e dos sons do fundo da savana.

Um safari que correu mal. Harry Street (Gregory Peck), caçador gravemente ferido, escritor com obra de sucesso, tem uma perna gangrenada, está a delirar. Nada de bom é expectável. Os sinais são claros. Os abutres aguardam nas árvores, as hienas rondam no acampamento. Está acompanhado pela mulher Helen (Susan Hayward).

Nos delírios da febre vêm-lhe à memória recordações do passado - amores mal resolvidos, atos falhados, expectativas não consumadas, cedências fáceis aos valores de mercado.

Como se fora a confissão dos seus pecados. A prestação de contas perante um ser superior, como se fora a confissão. O acampamento está próximo de Ngage Nagai, a Casa de Deus (em masai, a língua local), a seis mil e tal metros de altura, cume ocidental do Kilimanjaro, a montanha mais alta de África, junto à fronteira com o Quénia. Metáfora óbvia.

Em flashbacks, vamos acompanhando as viagens mentais do escritor pelo seu passado. As mulheres que amou, os locais que frequentou, as opções que assumiu. Determinante na organização da ficção é a relação com Cynthia (Ava Gardner), a mulher que ele encontrou em Paris, amou em África e perdeu para sempre na guerra civil de Espanha.

No original, escrito pelo Hemingway, o escritor morre com a gangrena. No filme, Darryl F. Zanuck, big boss da Twenty Century Fox, obrigou o realizador a dar-lhe vida para o futuro, com um avião a aterrar na savana a tempo de o transferir para um hospital (a lógica de mercado a impor as suas regras). Além de que o estúdio teve que argumentar forte e feio com cortes e alterações impostas pelos "bons costumes" do Código Hays. Hipocrisia.

O realizador do filme, em technicolor, foi Henry King, um daqueles autores clássicos que vêm lá muito de trás, dos anos vinte, do cinema mudo. Entre filmes mudos e sonoros fez mais de cem. Na verdade atravessou toda a história do cinema clássico americano. Como norma, fez filmes de todos os géneros, de histórias de amor aos westerns, do policial à comédia. O último filme que fez foi em 1962 e não foi nada despiciendo. Foi "Terna é a noite", a partir do livro homónimo do F. Scott Fitzgerald.

Foi candidato a Óscares mas nunca obteve nenhum. Assinale-se que foi um dos 36 fundadores da Academia de Hollywood, que todos os anos atribui os Óscares. Já o conhecemos há uns meses quando aqui passámos "O Sol Também Brilha"/ "Fiesta", também a partir de Ernest Hemingway, feito uns anos depois, outra vez com a Ava Gardner. As touradas em Pamplona, lembram-se?

A música tem a autoria de um artista incontornável da grande história de Hollywood, Bernard Hermann. É indissociável de Alfred Hitchcock. Contribuiu com a sua imaginação musical para filmes tão paradigmáticos do mestre inglês como: "Psico", "Intriga Internacional", "O Homem que Sabia Demais", "Vertigo". Só para citar alguns.

Mas o seu génio musical fez parceria com outros grandes realizadores, nomeadamente Orson Welles, Robert Wise, Joseph Mankiewicz, Nicholas Ray, Fred Zinnemann, Raoul Walsh. Nos anos 70 escreveu para o Brian de Palma e fez a banda sonora de "Taxi Driver" do Martin Scorsese. Já agora, François Truffaut, o cineasta francês amante do cinema americano, foi buscar a sua música para dois filmes seus nos anos 60.

O homem está sempre a tempo de se regenerar, encontrar o caminho certo da vida. O nosso caçador/escritor tem pelo menos mais uma chance. Se calhar vai apontar ao lado. O escritor real, o Hemingway, apontou ao coração, cansado da vida. Não falhou.

04 junho 2025

As Horas, de Stephen Daldry (2002)


As Horas, de Stephen Daldry. Com Meryl Streep, Julianne Moore, Nicole Kidman. 2002. 110m

Da literatura para o cinema. O tempo está a avançar. Sem pausas. Por saltos. Ritmo e cadência uniformes. Tic tac. Tic tac. "The Hours". Foi o título inicial do romance "Mrs. Dalloway" da Virginia Woolf. Confusão? Nem por isso. Vamos por partes.

1. Literatura. Michael Cunningham é um escritor americano da nossa geração (nasceu em 1952). Obra consistente, não muito ampla. Sensibilidade homo. Os temas básicos são os do nosso tempo. Permito-me copiar, com agradecimento, o que a Helena Vasconcelos escreveu no "Público" (Suplemento Cultural "Ípsilon") há precisamente um ano, numa entrevista ao escritor quando esteve em Lisboa no lançamento de "Dia", o seu último romance (papinha toda feita, com a qualidade e o rigor analítico de uma óptima crítica literária):

"Desde o sucesso alcançado com 'As Horas' (1998), onde é convocado o fantasma de Virginia Woolf, (...) tem escalpelizado a existência dos seus personagens - ansiosos, frustrados, eroticamente perturbados, alienados no seio de famílias e de comunidades específicas, atraídos por drogas e pela ideia de suicídio, dados a visões e propensos ao desastre - com o zelo de um antropólogo que observa à lupa uma parte da espécie humana...".

O título daquela peça jornalística era: "O poeta trágico da banalidade humana". Retenhamos o conceito de antropólogo, o que estuda a natureza humana.

A partir daqui já sabemos ao que vamos. Mas, antes, saliente-se que a obra de Michael Cunningham tem sido praticamente toda publicada em Portugal - pela Editora Gradiva - desde o seu primeiro romance "Uma casa no fim do mundo" (1990). Atingiu o auge com "As Horas" que, em 1999, lhe valeu o Prémio Pulitzer e referências elogiosas, prémios e consagrações um pouco por todo o mundo.

2. Cinema. Pois foi a "As Horas" que o Stephen Daldry foi buscar a matéria-prima para o seu filme. Uma história que são histórias. Três ficções numa ficção. Três mulheres e três tempos. Uma mulher - a escritora Virginia Woolf - referência das outras mulheres (personagens ficcionais), onde tudo vai desembocar. Três épocas diferentes ao longo do século XX. Três mulheres. Apesar de separadas no tempo, há algo que as liga e vai influenciar o seu destino. Estamos no quadro da pura ficção.
1923. Grã-Bretanha, a escritora inglesa Virginia Woolf (Nicole Kidman), recuperando de um esgotamento nervoso, frágil, escreve o romance "Mrs. Dalloway" que se tornará uma das suas obras-chave e referência da literatura do século XX. Comportamentos apáticos, deambulatórios. Estranhos. O marido a fazer o seu enquadramento de segurança, terra-a-terra, paciente. Muito paciente.

1951, Los Angeles, Laura Brown (Julianne Moore), uma dona de casa jovem, grávida, deprimida. Para escapar à rotina pouco feliz da sua vida, alimenta o vazio lendo "Mrs. Dalloway". Tem já um filho. Procura um significado para a sua vida. Vive uma sexualidade enganada no quadro das convenções sociais.

2001. Nova Iorque. Clarissa Vaughan (Meryl Streep), editora, vive com uma companheira, cuida delicadamente de Richard, seu amigo, antigo amante ocasional, homossexual, escritor famoso que vai receber um prémio de consagração e está a morrer de sida. Entretém-se a preparar uma festa de celebração (e certamente de despedida) para o seu amigo. Mas, não haverá festa. Richard resolverá a coisa à sua maneira e, para surpresa nossa, saberemos que ele foi o miúdo filho de Laura, lá no início da década de 50.

Clarissa, para evitar encarar as complexidades da vida, vai-a preenchendo de preocupações menores, de fait divers. Richard chama-lhe Mrs. Dalloway, como a personagem da ficção de Virginia Woolf (uma socialite de meia idade que procura organizar uma festa).

As vivências destas três mulheres vão saltando no tempo, fazendo pontes, tendo como elo comum o livro. De uma forma ou outra, cada uma questiona o significado da vida, a razão essencial de estarmos aqui, os equívocos, os desvios, os atropelos da vida.

Tudo começa pelo suicídio de Virginia Woolf. Sussex, Grã Bretanha, 1941. Cansada da vida, desajustada, apática (vozes... ouve vozes) enfia-se pelas águas de um rio adentro. Duas cartas de despedida, uma para o marido Leonard Woolf, outra para a irmã Vanessa Bell. Cena inicial e cena final. As horas... as horas... Não aguentou mais o tempo.

Foi David Hare quem pegou na ficção de Michael Cunningham e, a partir dela, criou o texto a filmar. É um homem de palco. Dramaturgo reconhecido e premiado, com mais de vinte peças teatrais de forte teor sócio-político, as suas posições e posturas públicas são claramente progressistas. Foi nomeado para os Óscares pelo argumento.

Stephen Daldry, foi o realizador. Mas a sua identidade criou-se nos palcos, como encenador. Poucos filmes, mas qualidade inquestionável. Em 2001 fez "Billy Elliot " (o seu primeiro filme), uma história absorvente sobre a luta contra preconceitos sociais e familiares de um jovem bailarino. Sucesso retumbante, inesperado.

Em 2008 fez "O Leitor", que deu o Oscar a Kate Winslet. O argumento foi também do David Hare e igualmente nomeado para Oscar (uma boa parceria). Foi produtor executivo e realizador de um episódio da série "The Crown", que dá um óptimo retrato das idiossincrasias e dos podres da monarquia inglesa.
A banda sonora foi feita por Philip Glass, meu herói pessoal das músicas. Puseram-lhe o selo de minimalista, mas a sua música tem uma sonoridade encantatória. As suas sinfonias, as suas óperas, as suas peças, as suas bandas sonoras (para filmes) são uma ilha de prazer num mundo cada vez mais cacofónico. Quem quiser fruir do prazer da sua música pode começar por "The Photographer" (1983) e continuar com "Songs from Liquid Days" (1988) uma parceria com vários artistas pop/rock (Paul Simon, David Byrne, Laurie Anderson...), lindíssimo.

E as actrizes? Não vale a pena destaques. Cada uma num escalão superior. Desta vez o sistema privilegiou a Nicole Kidman com o Oscar da melhor actriz (poderiam ter sido as outras). O filme teve ao todo nove nomeações, além de ter vencido Globos de Ouro.

Em síntese, imperdível.

À volta da meia noite, de Bertrand Tavernier (1986)

À volta da meia noite - Bertrand Tavernier. C/ Dexter Gordon, François Cluzet, Herbie Hancock. 2H13M. 1986 Fim dos anos 50. Dale Turner (Dex...