As Neves de Kilimanjaro, de Henry King. Com Gregory Peck, Ava Gardner, Susan Hayward. 1952. 117m
Ernest Hemingway. É sempre um prazer renovado reencontrarmo-nos com a sua ficção, mesmo que por via indireta, intermediada pelo cinema.
Ernest Hemingway. É sempre um prazer renovado reencontrarmo-nos com a sua ficção, mesmo que por via indireta, intermediada pelo cinema.
A sua vida, relativamente curta (morreu aos 61 anos por iniciativa própria - um tiro na cabeça) foi cheia de vivências extremas, exóticas e aventureiras; era emocionalmente instável e sujeito a estados de depressão. Americano do centro do continente, Illinois, foi um cidadão do mundo, privilegiado, amante dos prazeres da vida, talentoso, viajante, defensor da liberdade.
A sua obra é, em certo sentido, um espelho da sua vida. A I Guerra Mundial, a Guerra Civil de Espanha, a II Guerra Mundial. Jornalista, correspondente de guerra, escritor. Paris é uma referência da sua vida e Espanha a paixão. África foi um espaço de fascínio. Andou por lá em caçadas ("As verdes colinas de África", de 1935, é uma não-ficção a partir de um safari que ele fez na Tanzânia, acompanhado pela segunda mulher, Pauline Pfeiffer). Cuba (Finca Vigia) foi a sua terra adoptiva nos últimos vinte e três anos de vida. Lá viveu e se esgotou. Criou e alimentou as suas mitologias domésticas nos bares de Havana, embebedando-se com mojitos e, no mar ao largo, em aventuras piscatórias que foram a matriz para a sua obra-prima "O Velho e o Mar".
"As Neves de Kilimanjaro" é uma short story escrita em 1936. Já tinha publicado "O sol também se levanta/Siesta" (1926) e "Adeus às armas" (1929). O seu nome já contava, já era uma referência da ficção escrita americana. Obviamente muito do que ele passou para o texto é da sua experiência, das suas aventuras, dos seus amores, das suas fixações (caçadas e touradas), do seu sentido lúdico, da sua postura no mundo. Na verdade, o escritor Harry Street da história deste filme é o escritor Ernest Hemingway da História.
África. Nos anos trinta do século passado tinha uma outra configuração e identidade. As colónias portuguesas, inglesas, francesas, belgas e alemãs preenchiam o mapa do grande continente. Era a herança, em certo sentido, do Mapa Cor de Rosa, essa imposição dos "amigos" ingleses aos portugueses, da ligação entre Angola e Moçambique, lá nos idos anos noventa do século XIX. Passados mais de cem anos, África já não é aquela África mas, infelizmente, uma África muito pior. Formalmente a colonização acabou, na realidade a miséria é generalizada e a exploração das populações pelas elites locais é escandalosa.
"As Neves de Kilimanjaro" é a Tanzânia dos animais selvagens em liberdade, dos cheiros quentes e dos sons do fundo da savana.
Um safari que correu mal. Harry Street (Gregory Peck), caçador gravemente ferido, escritor com obra de sucesso, tem uma perna gangrenada, está a delirar. Nada de bom é expectável. Os sinais são claros. Os abutres aguardam nas árvores, as hienas rondam no acampamento. Está acompanhado pela mulher Helen (Susan Hayward).
Nos delírios da febre vêm-lhe à memória recordações do passado - amores mal resolvidos, atos falhados, expectativas não consumadas, cedências fáceis aos valores de mercado.
Como se fora a confissão dos seus pecados. A prestação de contas perante um ser superior, como se fora a confissão. O acampamento está próximo de Ngage Nagai, a Casa de Deus (em masai, a língua local), a seis mil e tal metros de altura, cume ocidental do Kilimanjaro, a montanha mais alta de África, junto à fronteira com o Quénia. Metáfora óbvia.
Em flashbacks, vamos acompanhando as viagens mentais do escritor pelo seu passado. As mulheres que amou, os locais que frequentou, as opções que assumiu. Determinante na organização da ficção é a relação com Cynthia (Ava Gardner), a mulher que ele encontrou em Paris, amou em África e perdeu para sempre na guerra civil de Espanha.
No original, escrito pelo Hemingway, o escritor morre com a gangrena. No filme, Darryl F. Zanuck, big boss da Twenty Century Fox, obrigou o realizador a dar-lhe vida para o futuro, com um avião a aterrar na savana a tempo de o transferir para um hospital (a lógica de mercado a impor as suas regras). Além de que o estúdio teve que argumentar forte e feio com cortes e alterações impostas pelos "bons costumes" do Código Hays. Hipocrisia.
O realizador do filme, em technicolor, foi Henry King, um daqueles autores clássicos que vêm lá muito de trás, dos anos vinte, do cinema mudo. Entre filmes mudos e sonoros fez mais de cem. Na verdade atravessou toda a história do cinema clássico americano. Como norma, fez filmes de todos os géneros, de histórias de amor aos westerns, do policial à comédia. O último filme que fez foi em 1962 e não foi nada despiciendo. Foi "Terna é a noite", a partir do livro homónimo do F. Scott Fitzgerald.
Foi candidato a Óscares mas nunca obteve nenhum. Assinale-se que foi um dos 36 fundadores da Academia de Hollywood, que todos os anos atribui os Óscares. Já o conhecemos há uns meses quando aqui passámos "O Sol Também Brilha"/ "Fiesta", também a partir de Ernest Hemingway, feito uns anos depois, outra vez com a Ava Gardner. As touradas em Pamplona, lembram-se?
A música tem a autoria de um artista incontornável da grande história de Hollywood, Bernard Hermann. É indissociável de Alfred Hitchcock. Contribuiu com a sua imaginação musical para filmes tão paradigmáticos do mestre inglês como: "Psico", "Intriga Internacional", "O Homem que Sabia Demais", "Vertigo". Só para citar alguns.
Mas o seu génio musical fez parceria com outros grandes realizadores, nomeadamente Orson Welles, Robert Wise, Joseph Mankiewicz, Nicholas Ray, Fred Zinnemann, Raoul Walsh. Nos anos 70 escreveu para o Brian de Palma e fez a banda sonora de "Taxi Driver" do Martin Scorsese. Já agora, François Truffaut, o cineasta francês amante do cinema americano, foi buscar a sua música para dois filmes seus nos anos 60.
O homem está sempre a tempo de se regenerar, encontrar o caminho certo da vida. O nosso caçador/escritor tem pelo menos mais uma chance. Se calhar vai apontar ao lado. O escritor real, o Hemingway, apontou ao coração, cansado da vida. Não falhou.

