04 junho 2025

As Horas, de Stephen Daldry (2002)


As Horas, de Stephen Daldry. Com Meryl Streep, Julianne Moore, Nicole Kidman. 2002. 110m

Da literatura para o cinema. O tempo está a avançar. Sem pausas. Por saltos. Ritmo e cadência uniformes. Tic tac. Tic tac. "The Hours". Foi o título inicial do romance "Mrs. Dalloway" da Virginia Woolf. Confusão? Nem por isso. Vamos por partes.

1. Literatura. Michael Cunningham é um escritor americano da nossa geração (nasceu em 1952). Obra consistente, não muito ampla. Sensibilidade homo. Os temas básicos são os do nosso tempo. Permito-me copiar, com agradecimento, o que a Helena Vasconcelos escreveu no "Público" (Suplemento Cultural "Ípsilon") há precisamente um ano, numa entrevista ao escritor quando esteve em Lisboa no lançamento de "Dia", o seu último romance (papinha toda feita, com a qualidade e o rigor analítico de uma óptima crítica literária):

"Desde o sucesso alcançado com 'As Horas' (1998), onde é convocado o fantasma de Virginia Woolf, (...) tem escalpelizado a existência dos seus personagens - ansiosos, frustrados, eroticamente perturbados, alienados no seio de famílias e de comunidades específicas, atraídos por drogas e pela ideia de suicídio, dados a visões e propensos ao desastre - com o zelo de um antropólogo que observa à lupa uma parte da espécie humana...".

O título daquela peça jornalística era: "O poeta trágico da banalidade humana". Retenhamos o conceito de antropólogo, o que estuda a natureza humana.

A partir daqui já sabemos ao que vamos. Mas, antes, saliente-se que a obra de Michael Cunningham tem sido praticamente toda publicada em Portugal - pela Editora Gradiva - desde o seu primeiro romance "Uma casa no fim do mundo" (1990). Atingiu o auge com "As Horas" que, em 1999, lhe valeu o Prémio Pulitzer e referências elogiosas, prémios e consagrações um pouco por todo o mundo.

2. Cinema. Pois foi a "As Horas" que o Stephen Daldry foi buscar a matéria-prima para o seu filme. Uma história que são histórias. Três ficções numa ficção. Três mulheres e três tempos. Uma mulher - a escritora Virginia Woolf - referência das outras mulheres (personagens ficcionais), onde tudo vai desembocar. Três épocas diferentes ao longo do século XX. Três mulheres. Apesar de separadas no tempo, há algo que as liga e vai influenciar o seu destino. Estamos no quadro da pura ficção.
1923. Grã-Bretanha, a escritora inglesa Virginia Woolf (Nicole Kidman), recuperando de um esgotamento nervoso, frágil, escreve o romance "Mrs. Dalloway" que se tornará uma das suas obras-chave e referência da literatura do século XX. Comportamentos apáticos, deambulatórios. Estranhos. O marido a fazer o seu enquadramento de segurança, terra-a-terra, paciente. Muito paciente.

1951, Los Angeles, Laura Brown (Julianne Moore), uma dona de casa jovem, grávida, deprimida. Para escapar à rotina pouco feliz da sua vida, alimenta o vazio lendo "Mrs. Dalloway". Tem já um filho. Procura um significado para a sua vida. Vive uma sexualidade enganada no quadro das convenções sociais.

2001. Nova Iorque. Clarissa Vaughan (Meryl Streep), editora, vive com uma companheira, cuida delicadamente de Richard, seu amigo, antigo amante ocasional, homossexual, escritor famoso que vai receber um prémio de consagração e está a morrer de sida. Entretém-se a preparar uma festa de celebração (e certamente de despedida) para o seu amigo. Mas, não haverá festa. Richard resolverá a coisa à sua maneira e, para surpresa nossa, saberemos que ele foi o miúdo filho de Laura, lá no início da década de 50.

Clarissa, para evitar encarar as complexidades da vida, vai-a preenchendo de preocupações menores, de fait divers. Richard chama-lhe Mrs. Dalloway, como a personagem da ficção de Virginia Woolf (uma socialite de meia idade que procura organizar uma festa).

As vivências destas três mulheres vão saltando no tempo, fazendo pontes, tendo como elo comum o livro. De uma forma ou outra, cada uma questiona o significado da vida, a razão essencial de estarmos aqui, os equívocos, os desvios, os atropelos da vida.

Tudo começa pelo suicídio de Virginia Woolf. Sussex, Grã Bretanha, 1941. Cansada da vida, desajustada, apática (vozes... ouve vozes) enfia-se pelas águas de um rio adentro. Duas cartas de despedida, uma para o marido Leonard Woolf, outra para a irmã Vanessa Bell. Cena inicial e cena final. As horas... as horas... Não aguentou mais o tempo.

Foi David Hare quem pegou na ficção de Michael Cunningham e, a partir dela, criou o texto a filmar. É um homem de palco. Dramaturgo reconhecido e premiado, com mais de vinte peças teatrais de forte teor sócio-político, as suas posições e posturas públicas são claramente progressistas. Foi nomeado para os Óscares pelo argumento.

Stephen Daldry, foi o realizador. Mas a sua identidade criou-se nos palcos, como encenador. Poucos filmes, mas qualidade inquestionável. Em 2001 fez "Billy Elliot " (o seu primeiro filme), uma história absorvente sobre a luta contra preconceitos sociais e familiares de um jovem bailarino. Sucesso retumbante, inesperado.

Em 2008 fez "O Leitor", que deu o Oscar a Kate Winslet. O argumento foi também do David Hare e igualmente nomeado para Oscar (uma boa parceria). Foi produtor executivo e realizador de um episódio da série "The Crown", que dá um óptimo retrato das idiossincrasias e dos podres da monarquia inglesa.
A banda sonora foi feita por Philip Glass, meu herói pessoal das músicas. Puseram-lhe o selo de minimalista, mas a sua música tem uma sonoridade encantatória. As suas sinfonias, as suas óperas, as suas peças, as suas bandas sonoras (para filmes) são uma ilha de prazer num mundo cada vez mais cacofónico. Quem quiser fruir do prazer da sua música pode começar por "The Photographer" (1983) e continuar com "Songs from Liquid Days" (1988) uma parceria com vários artistas pop/rock (Paul Simon, David Byrne, Laurie Anderson...), lindíssimo.

E as actrizes? Não vale a pena destaques. Cada uma num escalão superior. Desta vez o sistema privilegiou a Nicole Kidman com o Oscar da melhor actriz (poderiam ter sido as outras). O filme teve ao todo nove nomeações, além de ter vencido Globos de Ouro.

Em síntese, imperdível.

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