01 janeiro 2024

Carta de uma desconhecida de Max Ophuls

Com Joan Fontaine, Louis Jordan. 1948. 87 min

Comecemos pelo realizador. Depois se perceberá melhor o filme. Max Ophuls. Realizador de múltiplas facetas e diferentes línguas.  Nascido na Alemanha, francês por naturalização (fugiu à besta nazi por ser de origem judaica, apesar do prestígio acumulado como jovem encenador nos grandes palcos alemães e austríacos), deambulou pela Europa - França, Holanda, Itália, Suíça - até ao limite. Em 1942, quando o cerco nazi o estrangulava, conseguiu safar-se para a América com passagem (e estadia) em Lisboa.

Suportado pelo prestígio acumulado na Europa e apoiado pelo argumentista e realizador Preston Sturges (que belas e satíricas comédias sociais ele fez) entrou na máquina de sonhos de Hollywood. Fez uns filmes, mas claramente em desajustamento no império dos sonhos. Enquanto, por exemplo, Fritz Lang fez uma brilhante segunda carreira na América, para Ophuls Hollywood foi um limbo, um tempo de passagem. Era talvez demasiado  marcado pela cultura do século XIX do império austro-húngaro, pela sua identidade de mitteleuropeu.

Mas no vazio caem às vezes as pepitas de ouro. Foi o caso deste filme. Considerado pelos anais do cinema um dos mais belos melodramas, é uma história à maneira de um cineasta, da sua identidade e das suas origens. A partir de um livro de Stefan Zweig, escritor de Viena, também ele fugido ao nazismo (foi para o Brasil onde não aguentou o exílio e se suicidou), é uma história intensa de amor (romantismo às avessas, se se pode dizer). Amor, paixão e maldição.

E começa pelo fim. Longos flashbacks. Uma mulher que se suicidou, mas antes escreve uma carta ao equivocado objeto da sua funesta paixão. Depois vamos percebendo o que se passou e apreendendo como naquele mundo de convenções e salamaleques tudo era precário, tirando a paixão assolapada da heroína (é uma forma de dizer, o mais correcto seria chamá-la de pateta). Amar sem ser amada. Amor absoluto versus ausência de amor. A percepção do precipício e a incontrolável fuga para a frente. Ele, jovem génio pianista,  bem falante e elegante perdeu-se no labirinto das aventuras amorosas sem consequência; ela, obsessivamente apaixonada, sem qualquer sentido do real; um marido decente, a essência do militarismo e da honra. Um filho (fruto do pecado, na linguagem novelesca... ah ah ah) apanhado pela foice mortal do tifo. Tudo começa e acaba num duelo entre os homens. O que acontecerá fica para a nossa imaginação.

Depois da aventura americana, Max Ophuls regressou à Europa em 1950 e, em cinco anos, fez quatro filmes que são considerados obras-primas, particularmente o último, "Lola Montes". Um filme incrível, no seu universo barroco, a partir da história real de uma bailarina, actriz e cortesã do século XIX que foi amante de Liszt e de Luis I da Baviera. Ophuls explora até aos limites  a féerie da câmara móvel, da elegância formal e das cores exuberantes em atmosfera circense. Onírico.

François Truffaut, que naqueles anos 50 aprendia cinema - i.e.  vendo filmes - na Cinemateca Francesa, uma espécie de catedral frequentada por todos os jovens candidatos a cineastas, escreveu, e muito bem, que Ophuls - cineasta de cabeceira para a nouvelle vague - era um cineasta balzaquiano.

Para terminar, permitam recorrer a "The Film Enciclopedia" (Ephraim Katz) que assim descreve o cinema de Ophuls, tão bem ilustrado no filme de hoje:

"A sua reputação como um dos grandes realizadores do cinema decorre não propriamente do conteúdo dos seus filmes, que era muitas vezes bastante frágil ou inconsistente, mas da sua forma. Ophuls era um virtuoso do estilo de realização que enfatizava a mise-en-scene. A sua câmera era incrivelmente fluída, movimentando-se constantemente numa matriz de planos em movimento, planos de cima para baixo e inversamente, ângulos estranhos, acariciando sensualmente a textura barroca luxuriante do mundo intemporal em que os seus personagens românticos se movimentam."

O desafio está lançado. Um mundo que já passou (Viena do fim do século XIX ) reproduzido num sistema de produção cinematográfica que já não existe (Hollywood no seu auge) e uma história que, na sua matriz base, poderia ser de agora. A alma humana é muito complexa... 

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