09 novembro 2025

À volta da meia noite, de Bertrand Tavernier (1986)

À volta da meia noite - Bertrand Tavernier. C/ Dexter Gordon, François Cluzet, Herbie Hancock. 2H13M. 1986


Fim dos anos 50. Dale Turner (Dexter Gordon), um músico americano de jazz, talentoso saxofonista, negro, segue o caminho de muitos colegas seus no pós-guerra. Foge à pressão social e política na América. Na verdade, foge do racismo. Muda-se para Paris, onde consegue (sobre)viver tocando em "caveaux" e clubes de jazz. Alcoolizado ("please, one more verre de vin rouge"), pedrado, vai espalhando o seu talento pela noite fora, à deriva, sem eira nem beira.

Francis (François Cluzet) aparece do vazio da noite escura. Jovem francês, designer gráfico, autor de cartazes de filmes, completamente apaixonado pela música e o som incantatório de Turner, mas com problemas de dinheiro, ouve o seu astro da rua em frente ao "caveau" "Blue Note" (o mesmo nome do célebre clube de Nova York, que ainda existe), o som a sair pelas janelas. À chuva. A pura militância. Após um primeiro encontro, na rua, a aproximação transforma-se gradualmente em amizade.

A adoração torna-se proteção. Também à custa da sua filha, adolescente, um bocado abandonada. O jovem, procura ajudar o músico a controlar os excessos alcoólicos (e outros), trata dele como se fora o seu pai.

A proteção que o jovem francês proporciona ao músico, o universo familiar com que o envolve, ajuda-o gradualmente a controlar os excessos.

A passagem do tempo faz os seus milagres. Recuperado e reequilibrado, Dale Turner regressa às origens. Nova York, onde deixou uma filha, e onde sonha retomar a carreira, reencontrar os seus parceiros músicos no universo frenético da noite, nas jam sessions dos clubes mais emblemáticos - "Village Vanguard", "Birdland", "Blue Note" e outros mais. Do sonho ao pesadelo, um percurso curto. O jovem francês regressa a Paris, mas Dale já não. Elipse. Provavelmente o apelo das drogas e do álcool foi mais forte. Passado pouco tempo Francis recebe um telegrama de Nova York. Dale tinha falecido. Cansado da vida. Fim do ciclo.

Já desde a I Guerra Mundial que o jazz tinha ganho alguma expressão na Europa, particularmente Paris. Com o fim da II Guerra Mundial, muitos músicos, que tinham chegado incorporados no exército americano, acabaram por ficar pela Europa.

Nos anos 50 muitos dos músicos que já tinham uma história nos EUA, acabaram por vir e fixar-se no velho continente. Auto expatriados. Aqui tinham liberdade, a indiferença à cor da pele (a larga maioria era negra), o respeito e admiração dos fãs. Grandes músicos como Dexter Gordon (sim, o nosso "herói", viveu na Europa 15 anos, entre Paris e Copenhaga), Thad Jones, Kenny Drew, Ben Webster e Stuff Smith fixaram-se na Escandinávia, Stan Getz e Don Byas, em Espanha, Bill Coleman, Bud Powell, Kenny Clarke, Sidney Bechet, Steve Lacy, Johnny Griffin, Archie Shepp, em França, Art Farmer, na Áustria.

"Round Midnight" é o título original do filme. E é, também, uma das músicas mais conhecidas e tocadas da história do jazz. É um standard com milhentas interpretações, reinterpretações, reformulações e variações. Saiu da imaginação do Theolonius Monk, em 1943, um pianista genial com um som próprio, sua imagem de marca, como se a música soasse desafinada, dissonante, com falta de técnica. Pura ilusão.

No filme, "Round Midnight" é, juntamente com toda a outra música (e é muita), arranjada e produzida por Herbie Hancock, grande pianista do quinteto de Miles Davis nos anos 60. Hancock também faz uma perninha como actor (Eddie) aliás como outros músicos de topo (John McLaughlin - guitarra, Wayne Shorter - saxofones, Ron Carter - contrabaixo, Tony Williams - bateria) e muitos mais.

E, para nossa surpresa, temos o Martin Scorsese (para mim, juntamente com o Francis Ford Coppola, o maior realizador nosso contemporâneo) a fazer uma perninha como ator - o manager de Dale na América, que o vai buscar ao aeroporto e trata de tudo para ele voltar a tocar em Nova York.

Sendo uma ficção, o filme foi feito a partir das memórias de um outro personagem francês (Francis Paudras), da sua relação com outro grande músico da história do jazz, o pianista Bud Powell, um virtuoso, com mais uns episódios da vida do Lester Young, outro saxofonista seminal, que fez as gravações de referência com a enorme Billie Holliday.

Bud Powell foi, com Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Theolonius Monk e alguns outros, um dos que fez a revolução sonora no jazz dos anos 50, a que se convencionou chamar Bebop.

Este revolucionário pianista era algo instável, sofria de problemas mentais (foi sujeito a internamentos hospitalares e à terapia dos eletrochoques) e era "agarrado" à heroína, quadro pesado de vida, com comportamentos erráticos.

Pois nos anos 50, também ele se mudou para Paris e foi aí que se tornou amigo de Francis Paudras, um amante de jazz que o ajudou na sua reabilitação. Este fã francês escreveu um livro "La danse des Infidèles", onde registou a história que constituiu a matriz base para a ficção de Bertrand Tavernier.

Bertrand Tavernier (1941-2021), um bom cineasta francês, acertou na mouche com o filme. Mais do que tudo, um gesto de amor pelo jazz e certamente de recuperação de memórias da sua juventude em Paris. As cores pesadas, saturadas muitas vezes cinzentas ou negras, são o enquadramento adequado da atmosfera onde circulam os seus personagens , um certo mal-estar com a vida, uma fuga para a frente, uma tragédia previsível. Mas uma grande obra de cinema.

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