23 novembro 2025

Gloria - John Cassavetes (1980)


Gloria - John Cassavetes. C/ Gena Rowlands, John Adames. 2h03m. 1980

Ela e ele. Mais uma história de um casal, como em milhares de ficções? Não. Não é um casal ou um par amoroso. São uma mulher adulta e um puto. Se quisermos, um casal muito especial.

Gloria Swenson (Gena Rowlands) é uma mulher adulta, endurecida pela vida. Americana WASP (White Anglo-Saxon Protestant). Adivinha-se que já tem uma história para contar. Foi namorada de um gangster e tem uma relação de proximidade com os meios mafiosos. Habita no Bronx, bairro pesado de Nova York. Desiludida do amor, endurecida pela vida. O que ela quer é que não a chateiem. Não gosta de crianças. Não tem instintos maternais. Vive a sua vidinha.

Phil Dawn (John Adames), um miúdo de seis anos, vizinho de Gloria. Filho de um casal de porto-riquenhos, que é assassinado a sangue frio (mais a sua irmã) por gangsters, porque o pai, contabilista da organização, traiu e deu informações privilegiadas ao FBI e à CIA. No quadro de boas relações de vizinhança, os pais pediram a Gloria para ficar com o pequeno. Tudo se precipita. Os pais e a irmã são assassinados e Gloria fica sozinha com um miúdo que nada lhe dizia e um livro contendo informações perigosas sobre o grupo marginal. "É só um sonho" dizia ela, para libertar a tensão quando, na verdade, queria dizer pesadelo. Ainda por cima o pequeno Phil era impertinente, rebelde, orgulhoso e "machista", reprodução da sua educação familiar. Uma carga de trabalhos.

De um momento para o outro o quadro de normalidade transforma-se radicalmente. O assassínio da família e a ameaça de morte do filho. A sobrevivência no desespero. A fuga. Gloria "arrasta" o miúdo pelos bairros e ruas escuras e sórdidas de Nova York, num perigoso jogo do gato e do rato com os profissionais do crime. A partir de uma certa altura a sobrevivência passa pela defesa agressiva. Gloria não hesita em usar uma arma, em matar, mais do que uma vez. Vai muito para além do que alguma vez imaginou. A sobrevivência leva  à  auto descoberta. Há sempre um superavit de energia vital, escondido lá no fundo, pronto a funcionar, uma energia nervosa, em palpitação. 
Neste percurso de descoberta de Gloria, com avanços e recuos, há também um processo de descoberta do outro (o miúdo). Os afectos libertam-se, a aproximação afectiva entre a mulher adulta e a criança acontece, o futuro pode trazer alguma esperança. Já não é mau.

Filme de John Cassavetes (1929-1989), a partir de um argumento que ele escreveu e vendeu aos estúdios da Columbia. Gena Rowlands, a sua mulher de uma vida, indicada para actriz principal, conseguiu convencer os big bosses  da Columbia para que fosse ele a realizar. Não se pense que terá sido fácil. É que John Cassavetes era um personagem particular no universo do cinema americano. Um pé dentro do sistema de Hollywood e outro pé e - certamente mais de metade do corpo e toda a cabeça - fora do sistema. 

Dentro do sistema. Quando jovem actor tinha feito séries e filmes para a televisão em Nova York, mantendo sempre a chama viva do teatro. No início da década de 60, foi atraído a Hollywood onde fez dois filmes, mas não se deu bem com a máquina industrial, naqueles anos já a emperrar, mas aproveitava as vantagens e benefícios como actor. "A semente do Diabo" do Roman Polanski, "Os doze indomáveis patifes" do Robert Aldrich e "Os assassinos" do Don Siegel, a partir de uma short story do Hemingway, são alguns filmes de referência em que ele teve um papel importante como actor. Em Hollywood ganhava o dinheiro que, em Nova York, lhe permitia fazer os seus filmes não-Hollywood.

Fora do sistema. No fim dos anos 50 e  décadas de 60 e 70, em Nova York, John Cassavetes foi talvez o personagem mais destacado de uma espécie de nouvelle vague americana, um cinema informal, de proximidade, com histórias e personagens reais, sem filtros, pessoas comuns envolvidas em circunstâncias incomuns. Ele, com um grupo de actores que lhe eram próximos - a mulher,  Gena Rowlands,  o Ben Gazzara, o Peter Falk (lembram-se do detective  Columbo na televisão?) - foi fazendo um conjunto de filmes que marcaram a identidade daquele cinema moderno, pulsante, com vida, ainda que imperfeito. Orçamentos limitados, meios técnicos reduzidos, uma postura de desenrasca, estilo quase artesanal e muita criatividade. Mesmo fora do sistema foi candidato a Óscares com três filmes - "Rostos" (1968) e "Uma mulher sob influência" (1974) e "Gloria".
"Gloria" teve o Leão de Ouro, em Veneza, ex-aequo com "Atlantic City" de Louis Malle.

As histórias de quase todos os seus filmes eram ancoradas numa personagem feminina, representada pela actriz Gena Rowlands (1930-2024), sua mulher, sua musa e parceira na aventura cinematográfica. Actriz de grande qualidade, mas independente quanto baste, como o marido. Também fez papéis em filmes e séries na televisão (ganhou Emmys), e não entrou no sistema de Hollywood (na altura este já não tinha o glamour das décadas passadas e os graus de liberdade eram cada vez maiores), embora participasse em bastantes filmes (em 2015 foi homenageada com o Oscar Honorário). Nova York era a sua praia e o marido o seu referencial, o seu cúmplice. Com ele fez oito filmes e ficou para a história do cinema. Também filmou, entre outros, com o Woody Allen e o William Friedkin e, na fase final da carreira, fez vários filmes com o seu filho, Nick Cassavetes.

Pois o John Cassavetes pegou no seu argumento (com uma matriz ficcional do film noir) com o know-how acumulado em muitos anos de cinema - como realizador e actor - e conhecimento das regras do jogo dos estúdios. História consistente, improvisação quanto baste, filmagem e montagem segundo os cânones. Narrativa normalizada. Algumas sequências inverosímeis pelo meio (os encontros e desencontros entre Gloria e os gangsters na matriz densa da grande cidade). O resultado, sólido e consistente, foi compensado pelo reconhecimento crítico e público e pelo sucesso de bilheteira.

Depois do genérico, uma série de quadros com uma perspectiva quase impressionista de Nova York, uma sequência de planos panorâmicos. Noite. Os arranha-céus, as grandes avenidas. Grandes planos genéricos, em plongé, sobre a cidade, a massa urbana densa na noite, um grande estádio de futebol americano iluminado, a Estátua da Liberdade, as pontes do rio Hudson. Depois o dia. Um autocarro, as pessoas com ar cansado, uma passageira que sai e se aproxima de casa. Os encontros imprevistos e indesejáveis. A tensão. O perigo nas ruas e nos prédios. A família do miúdo a adivinhar o pior.

Depois é todo um jogo de afastamento e aproximação,  avanços e recuos, um vaivém no dédalo da cidade, a procura de uma solução difícil de encontrar. Os obstáculos a ultrapassar. O espectador vai "agarrado" àquele duo insólito, umas vezes crente, outras na expectativa do pior. Mas aquela travessia do inferno tem um sentido, começa a ter um sentido. Num meio tão violento e intransigente, o "milagre" acontece. Em Pittsburgh, lá nos domínios da indústria do ferro e do aço, a trezentas e tal milhas de Nova York, Gloria e Phil encontram-se para o futuro. Será possível? Tenhamos esperança.

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