"O Leopardo" - Luchino Visconti. C/Burt Lancaster, Alain Delon, Claudia Cardinale. 178 M. 1963.
Tudo acontece na Sicília. Tudo se passa entre dois momentos.
Começo. Genérico. Plano fixo sobre um portão que separa um palácio da sua envolvente. A linha de separação define aquele mundo. Para dentro o fausto, o requinte, o bom gosto, a luxúria dos poderosos aristocratas. Para fora, a miséria, a fome, a subserviência do povo embrutecido há muitos séculos.
Fim. Sequência. Um homem alquebrado, doente, vazio, arrasta-se, de madrugada por ruas degradadas, escuras e perde-se no fim da noite. Vem de uma grandiosa festa aristocrática, vai para a morte, anunciada (figurativamente). É o príncipe de Salina.
1860, grande agitação política e militar um pouco por toda a Europa (por cá também). Garibaldi inicia o movimento de unificação de Itália. Meio militar, meio guerrilha, muito entusiasmo e enorme desorganização. Anarquistas, carbonários, maçons, mercenários, tudo cabia lá. Muitos mortos, muitos assassínios. Muitas injustiças. Mesmo assim, imparável. O processo de unificação de uma multitude de Estados autónomos durou dez anos, com a igreja (os Estados eclesiásticos) pelo meio a ter um papel pouco digno.
É neste contexto de guerra civil, caldeirão efervescente, da chegada de Garibaldi à Sicília que tudo aconteceu. Em cerca de um mês, os "1000 de Garibaldi", camisas vermelhas no corpo, esfarrapados, muito entusiasmo e coragem, grande indisciplina e irresponsabilidade, tomaram o poder na ilha aos Bourbon. Aquela campanha ficou conhecida como a grande insurreição do sul. O romantismo associado era tão grande que até o grande Alexandre Dumas, escritor imaculado, se uniu aos libertadores com um navio, dinheiro e armas. Pequenas mitologias que ficaram para a história.
Fujamos à confusão exterior, aos estilhaços das bombas, e entremos no palácio. Uma família participa da missa privada. É o príncipe de Salina (Burt Lancaster), mais a mulher, os filhos e outras adjacências familiares. É assim como é há centenas de anos. A continuidade, os rituais. A norma dos comportamentos cimentados por gerações. Superfície visível. Mais abaixo é que as coisas são mais complexas. O príncipe tem lá fora a sua amante, a sua sexualidade. Nenhum dos filhos dele lhe merece grandes expectativas no futuro, pelo que transfere para o seu sobrinho Tancredi (Alain Delon) o seu empenho. O príncipe percebe que a sociedade está a mudar e mostra resistência, mas compreensão. Ajusta-se. Nas conversas de caça ele expõe com clareza o que pensa da Sicília, do poder e, em última instância, do homem. "Para que as coisas permaneçam iguais é preciso que tudo mude".
Por uma questão de segurança da família, mudam-se todos da capital - Palermo - para uma outra propriedade majestosa da família, Donafugata. Passam pelos bloqueios das tropas garibaldinas porque têm poder e influência para isso. Os coitados do
Zé povinho - para quem estava a ser feita a revolução - são impedidos, claro.
As relações entre as pessoas aí são quase medievais. O povo acolhe a família como se fosse de outro mundo. Senhores e escravos. Nesse contexto, seguros da instabilidade militar, repetem-se os rituais de poder, reproduzem-se os dogmas. Com fausto e presunção.
O sobrinho querido (Tancredi) - que, há umas semanas era ardoroso revolucionário e agora estava perfeitamente enquadrado no novo establishment político - encontra a mulher para o seu futuro, Angelica (Claudia Cardinale), filha do senhor lá do sítio, um arrivista, chico esperto, burgesso quanto baste, que gradualmente vai comprando as propriedades aos grandes senhores do passado, D.Calogero (Paolo Stopa). O príncipe tem que pactuar e encaixar (a sua inteligência política era enorme) porque aquele representa o futuro, nomeadamente para a sua família.
Tudo termina - o filme e, figurativamente, aquela época naquele lugar - com um grande e espaventoso baile onde, em pequenos pormenores, se vislumbram os artifícios, os ridículos, as idiossincrasias e as hipocrisias da aristocracia. Um tour de force deslumbrante, redundante, barroco, como se fosse a última manifestação de vida daquele mundo indolente, em declínio. O príncipe aguentou, mas em dor e melancolia. Ele sabe que aquilo não tem futuro.
Filme esplendoroso do Luchino Visconti, retratando um mundo que era também o seu e da sua família há centenas de anos. Uma câmara muitas vezes móvel, elegante, com a leveza das valsas do baile final. Sequências notáveis do ponto de vista da linguagem cinematográfica (o aparecimento de Angélica pela primeira vez no salão de festas da família do príncipe; dinâmica dos planos, o jogo das imagens determina o natural e previsível desenrolar da ficção).
O filme foi feito a partir do livro homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, saído uns anos antes (1958), uma espécie de memorial sobre Dom Fabrizio Salina (Príncipe de Lampedusa), avô do escritor.
E os actores, meu Deus. Burt Lancaster, a fazer um príncipe notável, com o olhar autoritário, a pose segura e o rigor da ancestralidade europeia, ele que vinha lá de Hollywood, onde a seguir a um policial vinha uma coboiada e logo depois uma comédia de costumes.
Alain Delon, jovem querubim do cinema francês, com um dos muitos bons papéis que fez no cinema europeu (já tinha feito com o Visconti "Rocco e seus irmãos", também com a Cardinale), a par de muitas e diversificadas porcarias, mais ou menos indigestas. Lamentavelmente abandonou-nos no início deste último Agosto.
Claudia Cardinale. Esta foi embora há duas semanas. Juntamente com Anna Magnani, Sofia Loren e Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale fez parte das grandes estrelas do cinema italiano que alimentaram o imaginário da nossa juventude. Teve uma carreira polvilhada de grandes filmes, trabalhou com alguns dos melhores realizadores e teve uma longa vida. Que descanse em paz.
Dediquemos respeitosamente esta sessão ao Alain Delon e à Claudia Cardinale.
Tenhamos o prazer de os acompanhar por quase três horas de grande cinema

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