Com Enrique Irazaqui e Margherita Caruso. 1964. 131 min
Parece impossível que eu não sendo crente, sendo marxista, possa contar a história do filho de Deus, com a fidelidade, que designarei de prosódica, ao Evangelho Segundo São Mateus...Eu instaurei um diálogo entre mim e os crentes. É essa a razão prática por que eu rodei o Evangelho.
Esta citação do autor numa entrevista aos Cahiers du Cinema (a Bíblia francesa do cinema nos anos 60 e 70) é bem clara quanto ao seu objectivo. Um intelectual engagé, com forte presença nos meios de comunicação italianos e sempre disposto a alimentar polémicas sobre todos os problemas sociais italianos e não só . Poeta, romancista, argumentista e cineasta. Muito mais próximo do Antonioni do que de Fellini, só para nos dar uma referência. Fez poucos filmes, sem uma identidade estilística ou conceptual. Os primeiros filmes têm um húmus neorrealista, outros a densidade formal/ritual das comédias gregas e outros - a Trilogia da Vida (Decameron, Contos de Canterbury e Mil e Uma Noites) - a beleza e as cores da pintura europeia dos séculos XIII e XIV. Mas lá iremos nas próximas semanas. Em "O Evangelho..." vemos a interpretação da palavra de Mateus numa perspectiva dessacralizada. Os locais são desolados, as pessoas são concebidas grosseiramente e o personagem de Cristo como se fosse um de nós. Há um lado hierático que marca a ficção. Os rostos tão duros e de uma beleza intemporal. Há uma simplicidade rough de arte povere (em paralelismo com o que estava a acontecer nas artes plásticas) que nos cativa. Apesar de Pasolini ter uma imagem pública pouco consentânea com os bons costumes burgueses e religiosos - marxista, ateu e homossexual (sim, já naquela altura tinha sido condenado por actos obscenos e corrupção de menores e, obviamente, expulso do PCI) o filme foi fortemente acolhido pela hierarquia de Vaticano e objecto de vários prémios de organizações católicas. Ah... O Pasolini dedicou o filme ao Papa João XXIII.
Contradições? Dialética, direi eu. Quem nunca tenha visto e tenha convicções católicas tem aqui uma bela reflexão sobre os fundamentos da nossa identidade religiosa.
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