01 janeiro 2024

Tempos Modernos de Charlie Chaplin

Com Charlie Chaplin, Paulette Godard. 1936. 83 min 

O cinema mudo já era. O sonoro ocupa o  espaço todo, com uma frincha de resistência protagonizada por um grande de Hollywood e do imaginário cinematográfico ainda em construção. Charlie Chaplin fez o filme contra a corrente. Manteve o seu personagem vagabundo sem voz (com a excepção de uma canção - pela primeira vez ouvimos a voz do actor, mas subvertendo os códigos da linguagem, pois canta uma misturada de palavras sem sentido), mas criou uma banda sonora expressionista, de grande eficácia dramática. A música quase como personagem. E lá encontramos o "Smile" essa melodia belíssima que ainda hoje, sob a forma de direitos de autor, deve valer muito dinheiro aos herdeiros do Chaplin.

O filme é uma pedra preciosa do cinema. Uma personagem à deriva num quadro social de forte perturbação, a depressão dos anos 30 na América . Acontecem-lhe mil coisas de que se vai safando com a agilidade e elegância do Charlot. Conflitos. Polícia, manicómio, orfanato, prisão. O habitual, se nos lembrarmos dos filmes mudos que víamos na televisão quando éramos menos velhos.

E a fábrica. O vagabundo nas reentrâncias mais profundas do capitalismo. A fábrica como metáfora social. "1984" do George Orwell avant la lettre. O modo de produção industrial como um sistema totalitário. O Big Brother vigia o sistema de produção em cadeia com ecrãs e controla rigorosamente todos os movimentos. Excepto um, obviamente. Chaplin criou algumas das sequências mais espantosas na história do cinema. O personagem a ser engolido pelas engrenagens industriais. Os automatismos industriais das chaves-inglesas a serem transmitidos ao corpo do vagabundo. O caos em polifonia. O nonsense à solta.

Paralelamente a história romântica. O vagabundo e a jovem. Paulette Godard um belo rosto, que fez uma óptima carreia em Hollywood nas décadas seguintes. Encontros e desencontros e...no fim uma hipótese de felicidade. Se calhar não passará de um sonho a dois.

Franz Kafka, o grande escritor das  angústias do Século XX, escreveu sobre Charlie Chaplin: "Como todo o autêntico humorista, tem a dentição de uma fera. É com ela que se lança contra o mundo."

Na verdade, sofreu durante décadas a amargura da perseguição política pelo FBI, acusado de comunista, ele que apenas tinha um elevado respeito pelos homens e um sentido de justiça social.

Para quem nunca viu será uma experiência de vida. Quem viu, vê outra vez com o mesmo prazer de iniciação às coisas sagradas da vida. Foi o meu caso.

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