Com Jerry Lewis, Stella Stevens. 1963.
107 min
Comecemos com uma citação de um autor (Leon Martin) que escreveu um livro sobre os grandes cómicos do cinema americano: "A maioria dos especialistas considera" As Noites loucas do Dr. Jerryl" a obra-prima de Lewis (...) Jerry desempenha o papel de um professor desajeitado, feioso (cara de esquilo), Julius Kelp, que inadvertidamente prepara uma poção que o transforma num galã arrogante chamado Buddy Love que tem tudo o que falta a Kelp - autoconfiança, sex appeal e segurança." - "The Great Movies Comedians".
A linha matricial da ficção ancora no grande clássico da literatura inglesa do século XIX - "O médico e o monstro" (1886) de Robert Louis Stevenson (que a maioria de nós certamente leu e que deu óptima versão cinematográfica - grande sucesso do início do sonoro de um cineasta europeu em Hollywood, mais um, Rouben Mamoulian). O eu e o outro no mesmo corpo. O bem e o mal, duas naturezas, duas substâncias, dois princípios. A duplicidade e a transfiguração.
Na ficção, dois Jerry Lewis nos antípodas um do outro:
- O normal, Julius Kelp, arquétipo consolidado no imaginário do espectador de filme para filme de Jerry Lewis, tímido, feio (aqueles dentinhos a espreitar pelos lábios) e desajeitado ("Sou dado a acidentes", diz ele com candura), com as suas meias brancas. Tem problemas com o seu corpo, que muitas vezes não lhe obedece ou se molda em formas anormais no espaço.
- O outro, o galã arrogante, postura de engatatão, narcísico até ao tutano. O Buddy Love que derrete os corações femininos, canta canções românticas e exibe a sua masculinidade mesmo em excesso.
E a ficção vai
e vem de um universo para o seu contrário, por impulso químico. Até que as
expectativas falham. É a débacle. Em pleno palco, rodeado por uma grande
orquestra, o galã cantor começa a reverter imprevistamente para o pobre
professor de química. Mas é também o milagre do amor. A jovem aluna (a bonita
Stella Stevens a puxar para a Marilyn Monroe) que nos vai orientando na
história entre os dois universos, fica com o professor para ela. Para o que der
e vier leva uns frasquinhos da poção mágica. Nunca se sabe...
Jerry Lewis fixa os limites da ficção entre a
tradição e a modernidade. O filme termina como uma peça de teatro. Os actores
apresentam-se ao público espectador. E, não certamente por acaso, o último
plano remete para a essência do cinema. Se existe pela câmera, atropele-se a
câmera. Até ao próximo filme. O distanciamento do Bertolt Brecht em apropriação
cómica. Agora cabe ao nosso amigo fruir dos prazeres da vida com a bela e
apaixonada menina. Coitada. Se calhar vai ter problemas.
A essência do
cinema de Lewis tem raízes profundas nas décadas anteriores da comédia
americana - Charlie Chaplin, Buster Keaton, Irmãos Marx, Abbott & Costello
só para recordar os maiores - o slapstick, o cartoon, o burlesco, o despoletar
de gags, às vezes primários, onde o inverosímil ganha consistência. Atente-se,
por exemplo, no exuberantemente sonoro relógio
do professor ou no pássaro falante de nome Jennifer, seu parceiro de
laboratório.
Jerry Lewis fez
entre 1949 e 1956, 16 filmes com Dean Martin que, na verdade, se chamava Dino
Crocetti. Americano italiano como é óbvio. Era a lógica de Hollywood levada ao
extremo. Uma produtividade infernal. A fórmula galã cantor versus trapalhão
simpático, naif e clownesco rendeu muito à Paramount. Mas a separação (conflitual) foi para sempre.
Aí começava
outra história para Jerry Lewis. Gradualmente tornou-se
Realizador/Actor/Produtor. Isto é, cada filme era ele e só ele. E o seu mundo
às vezes complexo. É o caso deste filme. Como gostavam de dizer os franceses,
Lewis tornou-se um autor (como Hitchcock ou Ford). Só que com decrescente
aceitação na América e enorme admiração em Paris. Estes franceses...
A propósito de
Dean Martin, e das feridas que ficaram para sempre, cito mais uma vez Leonard
Martin: "Muitas pessoas acreditaram que o personagem Buddy Love era baseado em Dean Martin e o
filme era um exorcismo das suas mágoas em relação ao seu ex-parceiro. Numa
entrevista Lewis argumentou 'Eu não retratei o papel de qualquer pessoa. Na
verdade, eu tomei cinco ou seis pessoas como referência. É interessante que (e
os meus amigos foram os primeiros a assinalá-lo) as pessoas pensassem que eu
estava a tomar como referência o Dean. Tão ridículo. É claro que quando fiz o
filme estava ainda muito próximo da nossa ruptura, pelo menos mais próximo do
que agora...Obviamente que estava lá uma pequena porção da arrogância do Dean -
subconsciente, naturalmente, eu não tinha consciência disso.' "
Com Lewis entremos nos dois mundos de fantasia que criou e deixemo-nos impregnar pelos pequenos e grandes pormenores do seu humor - entre a mais primitiva e irritante carantonha e o mais sofisticado gag.
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