01 janeiro 2024

As noites loucas do Dr. Jerryl, de Jerry Lewis (1963)

Com Jerry Lewis, Stella Stevens. 1963. 107 min

Comecemos com uma citação de um autor (Leon Martin) que escreveu um livro sobre os grandes cómicos do cinema americano: "A maioria dos especialistas considera" As Noites loucas do Dr. Jerryl" a obra-prima de Lewis (...) Jerry desempenha o papel de um professor desajeitado, feioso (cara de esquilo), Julius Kelp, que inadvertidamente prepara uma poção que o transforma num galã arrogante chamado Buddy Love que tem tudo o que falta a Kelp - autoconfiança, sex appeal e segurança." - "The Great Movies Comedians".

A linha matricial da ficção ancora no grande clássico da literatura inglesa do século XIX - "O médico  e o monstro" (1886) de Robert Louis Stevenson (que a maioria de nós certamente leu e que deu óptima versão cinematográfica - grande sucesso do início do sonoro de um cineasta europeu em Hollywood, mais um, Rouben Mamoulian). O eu e o outro no mesmo corpo. O bem e o mal, duas naturezas, duas substâncias, dois princípios. A duplicidade e a transfiguração.

Na ficção, dois Jerry Lewis nos antípodas um do outro:

  • O normal, Julius Kelp, arquétipo consolidado no imaginário do espectador de filme para filme de Jerry Lewis, tímido, feio (aqueles dentinhos a espreitar pelos lábios)  e desajeitado ("Sou dado a acidentes", diz ele com candura), com as suas meias brancas. Tem problemas com o seu corpo, que muitas vezes não lhe obedece ou se molda em formas anormais no espaço.
  • O outro, o galã arrogante, postura de engatatão, narcísico até ao tutano. O Buddy Love que derrete os corações femininos, canta canções românticas e exibe a sua masculinidade mesmo em excesso.

E a ficção vai e vem de um universo para o seu contrário, por impulso químico. Até que as expectativas falham. É a débacle. Em pleno palco, rodeado por uma grande orquestra, o galã cantor começa a reverter imprevistamente para o pobre professor de química. Mas é também o milagre do amor. A jovem aluna (a bonita Stella Stevens a puxar para a Marilyn Monroe) que nos vai orientando na história entre os dois universos, fica com o professor para ela. Para o que der e vier leva uns frasquinhos da poção mágica. Nunca se sabe...

 Jerry Lewis fixa os limites da ficção entre a tradição e a modernidade. O filme termina como uma peça de teatro. Os actores apresentam-se ao público espectador. E, não certamente por acaso, o último plano remete para a essência do cinema. Se existe pela câmera, atropele-se a câmera. Até ao próximo filme. O distanciamento do Bertolt Brecht em apropriação cómica. Agora cabe ao nosso amigo fruir dos prazeres da vida com a bela e apaixonada menina. Coitada. Se calhar vai ter problemas.

A essência do cinema de Lewis tem raízes profundas nas décadas anteriores da comédia americana - Charlie Chaplin, Buster Keaton, Irmãos Marx, Abbott & Costello só para recordar os maiores - o slapstick, o cartoon, o burlesco, o despoletar de gags, às vezes primários, onde o inverosímil ganha consistência. Atente-se, por exemplo, no exuberantemente sonoro relógio  do professor ou no pássaro falante de nome Jennifer, seu parceiro de laboratório.

Jerry Lewis fez entre 1949 e 1956, 16 filmes com Dean Martin que, na verdade, se chamava Dino Crocetti. Americano italiano como é óbvio. Era a lógica de Hollywood levada ao extremo. Uma produtividade infernal. A fórmula galã cantor versus trapalhão simpático, naif e clownesco rendeu muito à Paramount. Mas a separação  (conflitual) foi para sempre.

Aí começava outra história para Jerry Lewis. Gradualmente tornou-se Realizador/Actor/Produtor. Isto é, cada filme era ele e só ele. E o seu mundo às vezes complexo. É o caso deste filme. Como gostavam de dizer os franceses, Lewis tornou-se um autor (como Hitchcock ou Ford). Só que com decrescente aceitação na América e enorme admiração em Paris. Estes franceses...

A propósito de Dean Martin, e das feridas que ficaram para sempre, cito mais uma vez Leonard Martin: "Muitas pessoas acreditaram que o personagem  Buddy Love era baseado em Dean Martin e o filme era um exorcismo das suas mágoas em relação ao seu ex-parceiro. Numa entrevista Lewis argumentou 'Eu não retratei o papel de qualquer pessoa. Na verdade, eu tomei cinco ou seis pessoas como referência. É interessante que (e os meus amigos foram os primeiros a assinalá-lo) as pessoas pensassem que eu estava a tomar como referência o Dean. Tão ridículo. É claro que quando fiz o filme estava ainda muito próximo da nossa ruptura, pelo menos mais próximo do que agora...Obviamente que estava lá uma pequena porção da arrogância do Dean - subconsciente, naturalmente, eu não tinha consciência disso.' "

Com Lewis entremos nos dois mundos de fantasia que criou e deixemo-nos impregnar pelos pequenos e grandes pormenores do seu humor - entre a mais primitiva e irritante carantonha e o mais sofisticado gag.

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